terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Nos Porões da Memória II


É com alguma expectativa e ansiedade que aguardo a abertura da exposição de fotografia Nos Porões da Memória II, que estará patente ao público no MMI, a partir do próximo dia 31 de Janeiro, pelas 17 horas.

Será composta por fotografias de grande qualidade de dois autores, ambos estrangeiros, exímios na arte de captação de imagens.

Com elas convivi em momentos distintos da minha vida, aquando da montagem da exposição Faina Maior, em Novembro de 1992 e da composição do livro de Francisco Marques e Ana Maria Lopes, Faina Maior – a Pesca do Bacalhau nos Mares da Terra Nova, Edições Quetzal, em 1996 (esgotado), visto que se ilustrou com variadíssimas imagens destas, que chegaram generosamente até nós, pelas mãos dos Capitães amigos A. Marques da Silva e Vitorino Ramalheira. Ver mais aqui.

Friedrich Baier, engenheiro e arquitecto naval, embarcou nos lugres Gazela Primeiro e Creoula, para captar imagens de velame notáveis, bem como outras de um quotidiano forte e patético, mantendo, até hoje, saudáveis laços de amizade com o capitão, à época, A. Marques da Silva.

Hector Lemieux teve o condão de nos dar a conhecer o quotidiano da vida de bordo no Santa Maria Manuela, na campanha de 1966, no tocante documentário, de cerca de 15 minutos, a cores, “The White Ship”, além de óptimas fotografias, em todo o fulgor do contraste a preto e branco.

Todo este material, o Museu Marítimo de Ílhavo terá em exposição até 30 de Abril de 2009. Não deixem, pois, de visitar.
À laia de motivação para ver esta mostra, saboreiem alguns bons exemplos do que acabei de expressar.

F. Baier



F. Baier

O velame prepara-se para o vento

F. Baier
Subindo ao mastro

H. Lemieux – 1966
Enchem-se os quetes de bacalhau


H. Lemieux – 1966
O mar sempre presente



Fotografias amavelmente cedidas pelos Capitães Marques da Silva e Vitorino Ramalheira.

Ílhavo, 27 de Janeiro de 2009

Ana Maria Lopes


domingo, 25 de janeiro de 2009

O Iate Favorita



Já que estamos em maré de naufrágios de iates, recordemos o do iate Favorita, bem mais recente, que me levou a fazer uma visita ao local, para ver, claramente visto, e poder contar como foi. Já eram prenúncios do Marintimidades.

O iate Favorita encalhado, nas proximidades da praia do Areão


Na madrugada do dia 15 de Setembro de 1966, pelas 3 horas da manhã e, devido ao intenso nevoeiro que envolveu o nosso litoral, encalhou, entre as praias da Vagueira e de Mira, o iate Favorita, elegante embarcação que parece ter sido do ex-Rei Faruk, do Egipto, e que agora, pertencia a um capitalista belga, arvorando a bandeira panameana.

Segundo informação do jornal “O Ilhavense”, de 20. 9.1966, a tripulação do iate encalhado salvou-se e era composta por sete homens, embora viessem também, a bordo, os Srs. Américo Bolais Mónica e António da Silva Mónica, da Gafanha da Nazaré, para cujos estaleiros vinha a embarcação, a fim de ser reparada.
A notícia correu célere na Costa-Nova e nós não pudemos faltar. Fica “o boneco” para a posteridade.


O Favorita, ponto de atracção…

Alguns objectos foram dando à Costa e o espaço circundante esteve cercado e vigiado pela autoridade competente.

Foram feitas várias tentativas para salvar o iate, que estava seguro em 20 000 contos, mas em vão.

Apanhei no areal um delicado ornato de madeira, em forma de vaso floral, já um pouco surrado e batido pela pancada insistente do mar, vestígio de algum bonito móvel, que teria decorado o iate encalhado. Lá ficou pela casa da Costa-Nova.

Imagens – Arquivo pessoal da autora

Ílhavo, 25 de Janeiro de 2009

Ana Maria Lopes

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Iate "ADELAIDE COSTA"



O desejo de escrevinhar um post tem as origens mais diversas: um afecto forte por um assunto, uma paixão incontida por alguns lugres, a memória agradável de um evento, a observação de uma cena marítima emocionante, uma “dica” de um amigo… e assim vão nascendo, qual o desenovelar de fio de lã. E uma boa arca cheia de fotografias antigas? Que emoção! … E um espólio que nos é facultado! …Que sensação e que expectativa!!! A ligação à água, mar e ria, é, no meu caso, imprescindível.

Há uns meses, passei um feriado inteirinho, num sótão, a coscuvilhar caixas de fotografias, mais ou menos antigas. Alto lá, uma elegante embarcação, uma fotografia antiga, montada em cartão, que concluí ser uma raridade, chamou-me a atenção. A falta de identificação, por vezes, desmotiva-me. Mas com o auxílio da lente de bordo do meu Avô, enxerguei bem: ADELAIDE COSTA.Tenho colaboradores amigos, que, por vezes, me ajudam a montar o puzzle. Quando completo, é gratificante.
Nunca tinha ouvido falar do Adelaide Costa. Aí vai a história, para quem como eu, não a sabia:




O iate ADELAIDE COSTA

O Adelaide Costa foi um iate de cabotagem com registo no Porto que navegou entre 1902 e 1912.
Foi seu armador José Soares da Costa, do Porto (julgo tenha sido proprietário de pelo menos 12 navios tais como barcas, lugres, palhabotes e iates), supostamente um dos mais importantes do Porto, ligados ao comércio, entre finais do séc. XIX a princípios do séc. XX).

Construído por José Martins de Araújo Júnior, de Vila do Conde, foi lançado à água em 18 de Agosto de 1902. Tinha uma tonelagem bruta de 128,41 toneladas. E líquida de121,99.
Foi vendido em 1910 a José Joaquim Gouveia, também da praça do Porto, que ai conservou o registo. Mudou o nome para Oceano.
Naufragou à entrada do porto de Leixões, devido a escassez de vento e agitação de mar em 9 de Janeiro de 1912.
Relato do naufrágio:

Ao tentar entrar em Leixões pelas 14 horas, com pouco vento, foi impelido por vagas alterosas, caindo sobre os blocos próximos ao cabeço do Molhe Sul, ficando muito danificado. A tripulação procurou aguentar a crítica situação, lançando mão a pedaços da embarcação enquanto aguardava auxílio de terra. Acorreram os rebocadores "Luzitania" da casa Burmester e o "Águia" da firma J.A. Andresen, que se encontravam em Leixões, além de outras embarcações e barcos salva-vidas. Os dois rebocadores, em conjunto com os salva-vidas"Leça" e "Leixões", operaram com bravura, conseguindo salvar cinco tripulantes, dos oito que se encontravam a bordo. O Oceano procedia de Portimão com um carregamento de figos, tremoços e polvo. Infelizmente não tinha seguro, pelo que o armador, com a perda do iate, ficou com um prejuízo de 6 000$00 (escudos). Os tripulantes salvos foram assistidos no posto de Socorros a Náufragos.

Obrigada, amigo Reimar, pela colaboração!

Para os mais curiosos e picuinhas, como eu, este iate Oceano nada tem a ver com o lugre-patacho Oceano (a denominação não me era estranha), que foi construído na Alemanha, em 1986, com o nome de “Emma”, comprado pela Sociedade de Pesca Oceano, da Figueira da Foz.
Participou nas campanhas de bacalhau de 1912 a 1915, destinando-se depois a viagens de comércio. Foi seu primeiro Capitão o Sr. Armando C. Guerra e naufragou a 3 de Janeiro de 1920, sob violento temporal.

Fotografias – Arquivo pessoal da autora

Ílhavo, 22 de Janeiro de 2009

Ana Maria Lopes

domingo, 18 de janeiro de 2009

Lugre bacalhoeiro Cruz de Malta


A propósito da biografia do meu Avô, que está em agenda de edição num futuro próximo, procurava uma imagem do Cruz de Malta, que também consta dos navios que comandou.

Como ainda tenho uma ideia, se bem que vaga, do Cruz de Malta e, perante as várias imagens que tinha e as que alguns amigos me foram cedendo, “fez-se luz” e alto lá!... podia juntar os dados que tenho do navio, pesquisar outros e tornar a sua história mais aliciante e apetecível.

É obrigatório começar pelo lugre Laura. Este navio, de três mastros, sem motor auxiliar, foi construído em 1921 na Gafanha da Nazaré por José Maria Mónica, sob risco de José Soares; propriedade da Empresa de Navegação e Exploração de Pesca, Lda., participou nas campanhas de 1921 a 1926. Imobilizou em 1927, para reconstrução, a cargo de Manuel Maria Bolais Mónica e toma o nome de Cruz de Malta na campanha de 1928, então, propriedade da Empresa Testa & Cunhas, Lda.

Lugre Laura

Lá que a reconstrução fez milagres, pelo menos, a nível estético, fez. O Laura não devia muito à elegância, na sua roda de proa direita e rombuda, enquanto que o Cruz de Malta (ler mais em Navios e Navegadores), primava pela beleza e elegância, no lançamento da roda de proa. Passou a ter um motor Guldner, com potência de 150 cavalos.


Cruz de Malta frente à seca


Na primeira campanha ao serviço da nova empresa, com 47 tripulantes e 42 dóris, a captura limitou-se a 1597 quintais de peixe e 2 toneladas de óleo de fígado de bacalhau, que renderam 195.600$00, dos 5500 quintais possíveis. Foi, talvez, a grande escassez de peixe, neste período, que levaria os navios nos anos seguintes até à Groenlândia, revelando-se, desde aí, local obrigatório de pesca.


Cruz de Malta encalhado


Dentre várias, foi esta a curiosa fotografia que quase me levou a dedicar um post a este navio. Situação, para mim, inédita. Encalhado frente a S. Jacinto (não havia, ainda o actual Triângulo), ferro a pique, vê-se bem, é aliviado. Três mercantéis, um por bombordo e dois, por estibordo, trasfegam o que é possível, incluindo dóris empilhados, atravessados, a bordo. Original!!!


Coexistiram na Empresa o Cruz de Malta, o Inácio Cunha, o Novos Mares e o São Jorge.

Foi, por uns anos, sempre muito cuidado, o navio mais velhinho e de menor capacidade de Testa & Cunhas, mas, talvez porque tivesse sorte, era considerado a mascote, uma espécie de talismã, para a mesma. Prova disso mesmo, a adopção, a partir de 7 de Março de 1947 (de acordo com documento existente) da cruz de Malta como logotipo da sociedade e a construção, em aço, em 1982, pelos Estaleiros de S. Jacinto, de um arrastão costeiro com o mesmo nome. O desenho da cruz do logotipo nem sempre respeita o design dos quatro braços em V, característicos da cruz de Malta.


À direita, Capitão Júlio Paião, a bordo do Cruz de Malta – 1943



Passaram pelo pequeno, mas garboso lugre, como capitães, tantos ilhavenses conhecidos como o Avô Pisco (1928 a 37), Capitão Quim da Graça (1938), Capitão Júlio Paião (1943 e 44), Capitão José S. Bixirão (Ponche) (1947 a 49), Capitão Manuel da Silva (1950 a 55) e tantos outros! Tantas e tantas safras, tantas e tantas campanhas, tantos e tantos sacrifícios, tantos e tantos perigos!

A navegar a todo o pano



A sua vida já era longa, quando por alquebramento (água aberta), se afundou, em 7 de Agosto de 1958, sob o comando de António Fernandes Matias, tendo sido recolhida toda a tripulação, a bordo do Gil Eannes.

Em vias de naufragar…



E assim foi vivendo, soberano, o Cruz de Malta, levando e trazendo tantas vidas, tantas saudades e tantas esperanças! Destes pedaços de tábuas e de almas é feita a Faina Maior!

Fotografias gentilmente cedidas por vários Amigos e arquivo pessoal da autora

Ílhavo, 18 de Janeiro de 2009

Ana Maria Lopes



quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Miniaturas de veleiros em garrafas - II



Quem havia dado ao Sr. Samuel as primeiras dicas e lhe havia ainda mais estimulado o gosto fora o Capitão Weber Bela, há pouco falecido (1925 - 2008), seu parente, extremamente habilidoso também, amante da mesma arte.
Para meu espanto, um belo dia, numa das suas vindas de Lisboa a Ílhavo, o Capitão Bela ofereceu-me várias garrafas com miniaturas diversas, entre elas, uma do navio-escola “Sagres”. Aqui está:



O Sr. Samuel sorria com satisfação, ao dizer-me que o genro, José Alberto Ferreira Malaquias, apesar de, na altura, andar embarcado, lhe ia seguindo as pisadas. Hoje, depois de ter abandonado a actividade marítima, tem continuado e aperfeiçoado a sua técnica, desenvolvendo-a de forma mais activa.
Participa em várias feiras de artesanato da região de Aveiro e exemplares da sua obra podem ser encontrados por variadíssimos locais.

O primeiro barco que Samuel Corujo construíra fora uma réplica do Anfitrite I, em que andou, com 15 anos, seguido do Patriotismo, onde naufragara (1941).

Recordou-me, várias vezes, nas nossas conversas, o acidente que sofrera, a bordo do Santa Mafalda, em 1958, enquanto 3º motorista. Episódio esse, imortalizado pela pena de Bernardo Santareno, ao tempo, médico no Gil Eanes, em “Nos Mares do Fim do Mundo”, que me abalanço a transcrever:

Alô! Alô! O “Santa Mafalda” chama urgentemente o médico! Alô! Alô! Médico! Médico!...


Eu estava no “Bissaia Barreto” (…). Foi então, à hora do jantar, que, aflitivamente, este S.O.S. rasgou os ares: o terceiro maquinista do “Mafalda” tinha uma mão esmagada, por acidente de trabalho!
Era preciso intervir e quanto antes.
E os dois navios navegaram ao encontro um do outro.
O enfermeiro, o Lourenço, a voz trémula de emoção, deu-me pela”fonia” mais pormenores: um dos dedos, preso à mão por escasso retalho de pele, estava sem dúvida condenado; e além deste, dois dos outros dedos desta mesma mão, com fracturas múltiplas e expostas, teriam provavelmente a mesma sorte.
Era preciso ver as lesões, mas como chegar ao “Mafalda”? O mar, agora, estava bravo como eu ainda não o vira: vagas apocalípticas cruzavam o “Bissaia” em todos os sentidos, o vento levava pelos ares madeiras e cordame, a névoa tornara-se impenetrável. Como? Como passar?! (…)
… Era impossível tentar a minha passagem. Ai, o alívio que eu nesse momento senti! (…)
Em todo o caso e sempre pela telefonia, lá fui dando instruções de que me lembrei ao pobre Lourenço.
Era desesperante.
O mar atingira o auge da fúria: rasgava tudo; vencia, com o seu clamor monstruoso, os pobres gritos humanos; lavava, com a espuma claríssima das suas ondas, a sangrenta nuvem daquela hora.
(…) Mas aquele ferido, tão novo, um rapaz… ai, aquela mão! E se fosse possível salvar-lhe os dedos lacerados? Bem bastava o outro, o que já tinha sido amputado (…).
E mandei seguir o “Santa Mafalda” para terra.


*****

Recebi hoje – oito dias sobre este acidente – uma notícia admirável: o terceiro maquinista, apesar da brutalidade das lesões, ficará com os seus dedos!
Tudo valeu a pena: a angústia daquela hora, a raiva humilhante da minha impotência, o suor de sangue e fel do Lourenço, o desespero dinâmico do comandante do “Mafalda”.
Valeu a pena, valeu a pena!


Com a forte e bela narrativa de Santareno, ficou Samuel Corujo imortalizado na nossa literatura náutica e com os “seus barquinhos”, lembrado nas colecções de miniaturas de veleiros em garrafas, espalhadas por todo o mundo.

Imagens – Arquivo pessoal da autora

Ílhavo, 15 de Janeiro de 2009

Ana Maria Lopes

domingo, 11 de janeiro de 2009

Miniaturas de veleiros em garrafas - I




Um dos entreténs dos marítimos habilidosos a bordo, desde longa data, era, em dias de mau tempo, a construção de pequenas miniaturas de barcos, que poderiam, eventualmente, transformar-se em objectos votivos.
Outra, e não menos interessante, eram as miniaturas de barquinhos inseridos em garrafas.
O nosso museu marítimo deve ter uns quatro a cinco exemplares doados pelos autores, já de fins do século XIX, que, entretanto, recolheram a reservas.

Um pouco da história…

A miniatura de barco mais antiga que se conhece está guardada no Museu do Louvre, em Paris. Trata-se de um modelo duma embarcação funerária que dispunha de vários remadores e que foi encontrado em 1922 no túmulo do faraó Tutankhamon (1354-1346 A.C.). Sendo mais um objecto de culto do que um modelo de barco em miniatura, transmite-nos conhecimentos sobre a marinha daquele tempo e sobre os hábitos religiosos, as crenças e os rituais da época. Também nos ajuda a formular a eterna pergunta: porque é que o homem faz miniaturas de barco? A primeira resposta que ocorre é: por gosto.

Temos que confessar que estas miniaturas exercem um verdadeiro fascínio. Adoramos examinar o velame e o cordame e enumerar as antenas sucessivas de mastro em mastro. Pequenos ou grandes, os barcos têm sempre um grande encanto. No cais, convidam-nos à partida, à viagem. Instalados numa prateleira ou no tampo de uma cómoda fazem-nos sempre sonhar.

Os maiores criadores de modelos reduzidos, são os marinheiros, impelidos numa primeira fase por razões sentimentais. Fabricadas por prazer, estas miniaturas começaram por ser recordações. São testemunhos disso os ex-votos.
Velhas ou novas, estas miniaturas são o testemunho vivo do gosto eterno do homem pelo mar, pelas viagens e pelos sonhos. São antes de tudo mais, belos objectos carregados de emoção e de história. Através delas, podemos escrever um pouco da história da navegação... que é justamente outra história.

Texto (on-line) de Pierre Faveton

A pessoa mais conhecida em Ílhavo, como fazedor deste tipo de trabalho era Samuel Corujo.

O Sr. Samuel (1922 – 2005) e eu, vizinhos de rua, visitávamo-nos com frequência, para tratar dos “nossos negócios” e, sobretudo, para eu o ver trabalhar e ouvir as suas histórias.

Extremamente afável e delicado, sempre me recebia bem e falava dos seus “barquinhos” com muito carinho. Tinha uma lista de espera, nas encomendas, infindável!
Como me dizia, dormia mal, acordava cedíssimo e sentava-se a trabalhar, colocando uma prancheta com os materiais e singelo instrumental, sobre os braços do cadeirão. Os utensílios eram poucos e rudimentares, mas a habilidade e paciência eram imensas.

Escolhida a garrafa com que ia trabalhar, começava por talhar o casco do lugre escolhido a canivete, afagando-o com doçura. As madeiras utilizadas eram o pau de bambu e a balsa, fácil de trabalhar. Sobre o convés, não lhe faltava a gaiuta, o restante casario, os albóis, o molinete e as pilhas de dóris.
Seguiam-se os mastros, delicados quanto baste. Tinham de ser móveis, para se poderem aninhar, ao entrar na garrafa. Todos os cabos, finíssimos exigiam um pormenor estonteante. E o velame? De pano latino ou armação redonda, era feito de mortalhas de cigarros. Estava pronto o barquinho, mas repleto de fios à proa.


Começava a preparar o mar, dentro da garrafa: de lado, ia ajeitando uma massa abetumada, que pintava de azul e que introduzia no fundo da garrafa, sem esquecer o pormenor da ondulação. Havia compassos de espera, para secagem de materiais.

Quando chegava a fase final, avisava-me para eu ir ver. Truque de ilusionista: todo aninhadinho, mastros deitados, velas dobradas, lá entrava o lugre, na boca da garrafa. Depois da secagem que possibilitava a fixação ao mar, havia que puxar todos os fios, para erguer mastros, cabos e velas. Ao deixarem de ser necessários os fios auxiliares, eram atados e invisivelmente colados à proa, normalmente no pau da bujarrona e, posteriormente, cortados por uma lâmina, na ponta de um pauzinho.


A garrafa era hermeticamente fechada por uma rolha onde assinava e datava o minucioso trabalho, lacrada com cera derretida pelo calor da chama de uma vela. Estava pronto. Cada exemplar demorava-lhe cerca de 24 horas a ser construído e o dinheiro que levava, mal pagava os materiais.
O “seu figurino” eram fotocópias do conhecido, mas raro, álbum organizado pelo Grémio, “Frota da Pesca do Bacalhau”, de 1946.

Novos Mares


Começou a trabalhar em 1983, após a aposentação e desde essa data e até 1999, já haviam “nascido” das suas mãos cerca de 1700 barquinhos. Tinha uma variante interessante que ainda era mais detalhada: a garrafa do Farol, do Forte e palheiros da Costa-Nova, por onde passava, normalmente, o Gazela, só com mastros, para não encobrir a paisagem. Ei-la:

Gazela Primeiro


(Cont.)

Imagens – Arquivo pessoal da autora

Ílhavo, 11 de Janeiro de 2009

Ana Maria Lopes

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Bateira berbigoeira de Marques da Silva




As estadias do Amigo Marques da Silva, na Gafanha da Nazaré, são-me sempre extremamente proveitosas.
Passamos sempre uma ou duas tardes em amena cavaqueira, na elaboração de textos e observação de imagens que interessam a ambos. Os museus, as palestras e os colóquios museológicos, os conhecimentos afins, os navios, a pesca do bacalhau, os modelos de embarcações tradicionais…enfim, assunto não nos falta.
Hoje, o modelo de bateira berbigoeira que ele acabou há pouco, foi o centro das atenções.

O MMI acolhe na sua colecção de modelos de embarcações lagunares, desde 1934, uma dita bateira berbigoeira executada por Porfírio da Maia Romão. No Catálogo da Sala da Ria, é descrita, de acordo com informações antigas, que nos chegaram desde Américo Teles: miniatura sem escala da bateira berbigoeira, embarcação de fundo chato. De vela trapezoidal, era usada no transporte de sardinha e de todo o pescado das costas de pesca para as praças onde era vendido. Quando usada na arte da berbigoeira, necessitava de um aparelho desmontável, à proa, o sarilho. Sem pintura.
Este modelo chamou a atenção do hábil Marques da Silva, que foi rever atentamente o modelo existente em Lisboa, no Museu de Marinha, pertencente à Colecção Seixas.
De posse do seu plano, pôs mãos à obra e o resultado foi este.

Modelo à escala de 1/25


Não contente com a obra, cedeu-me este escrito, que burilámos e completámos o melhor possível, de acordo com os nossos conhecimentos e consulta de bibliografia adequada.

“Na execução deste trabalho, apliquei madeira de balsa no tabuado e ramos de limoeiro no cavername, na roda de proa e de popa, nas bancadas, sarretas e molinete. Para o mastro, verga e cabo do ancinho de arrastar, utilizei ramos de ameixieira e nos remos e vertedouro, madeira de tola.
Para o ancinho, ganchorra e fateixa, servi-me de arame de cobre e a vela foi recortada em pano de algodão.
A bateira berbigoeira ou mercantela, adaptada a tal arte, era utilizada na Ria de Aveiro, principalmente no Canal do Norte, entre S. Jacinto e Torreira, para recolha de amêijoa e berbigão de maior tamanho.
Como trabalhava em água de certa profundidade e forte corrente, só conseguia arrastar o seu grande ancinho de ferro, utilizando uma pesada fateixa, fixada à distância e um molinete (sarilho com tambor de madeira), para virar a amarreta, que gornia num moitão alceado, cuja alça encapelava na bica da proa).

Pormenor da proa com fateixa e amarreta

Pormenor do sarilho


Assim revolvia os fundos com os fortes dentes do ancinho, levantando os bivalves, que escorregavam para um saco de rede preso a um arco também de ferro, adaptado às costas do referido ancinho.
Em águas mais profundas, podia ser usada a ganchorra, que procedia ao trabalho de forma idêntica à do ancinho.

Pormenor do ancinho (à esquerda) e ganchorra


Sendo uma embarcação pesada e espaçosa para o trabalho, tinha, normalmente, uma tripulação de quatro a cinco homens.
Deslocava-se com dois grandes remos de escalamão ou com vela de pendão de amurar ao mastro, segundo tradição da ria.
O costado e o fundo eram breados, por vezes, com cara branca.
Dimensões normais utilizadas:

Comprimento – mais ou menos 12.00 m
Boca – mais ou menos 2.00 m
Pontal – mais ou menos 0.65 m

A ganchorra ainda continua a ser utilizada no Tejo pelas chatas da Trafaria que vêm capturar amêijoas entre Caxias e Paço de Arcos. Usam o molinete metálico que fazem girar manualmente com dois volantes adaptados ao tambor cilíndrico.
Nos canais da ria de Aveiro, Cale da Vila e Cale de Mira, continua a ser usado o ancinho metálico, a que dão o nome de cabrita, aplicado numa vara muito longa, de dentro de embarcações, normalmente bateiras adulteradas, ancoradas. Nada já é tão artesanal como era.

Fotografias – Arquivo pessoal da autora

Ílhavo, 6 de Janeiro de 2009

Ana Maria Lopes


quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

O naufrágio do CAPITÃO PISCO...





Era uma bela tarde, quente e calma, de Agosto, do ano de 1970. A família, de férias, gozava-as, em pleno, na Costa-Nova. Naquele dia, a nossa tarde foi diferente, tonificante e emotiva. As quatro gerações presentes – Avó, Mãe, eu e o meu filho mais velho – e restantes elementos da família preparavam-se para uma ida a S. Jacinto. Não era piquenique, nem uma ida às camarinhas, passeios estivais também bastante agradáveis. Mais raro e emocionante – o bota-abaixo de um arrastão costeiro, nos Estaleiros de São Jacinto. É uma “estória” muito recente que já tem um grande peso na nossa história. As pessoas e as coisas que já mudaram de cenário!
E quando o arrastão se chamava CAPITÃO PISCO, a carga emotiva, para todos nós, era muito mais forte. Ler mais aqui.

De carro até ao Forte, na lancha da carreira até S. Jacinto, que belo passeio! É sempre agradável ver o Farol numa perspectiva diferente e passar pela entrada da Barra, com a sua forte corrente de águas cristalinas, espumantes e límpidas…

Claro que um bota-abaixo, naquele tempo, de um pequeno arrastão costeiro, não tinha nada a ver com as encenações conseguidas, em anos anteriores, nos Estaleiros Mónica. Só que a emoção de um navio que rasga, pela primeira vez, as calmas águas da ria…ninguém lha tira…
A construção, em aço, nº 85 do estaleiro, de 32 metros de comprimento, destinava-se à pesca costeira com redes de arrasto.
A minha Avó “amadrinhou” a nova unidade, emocionando-se mais intimamente com o acto; trouxe, por gentileza da administração do estaleiro, um belo embrulho de papel colorido e laçarote sedoso e enovelado, cuja peça envolvida ainda hoje me faz parar diante dela, pela sua beleza e significado afectivo.




Lá estou eu a perder-me com as cerimónias de bota-abaixo…Fixemos o objectivo – o naufrágio do CAPITÃO PISCO.

No primeiro de Janeiro de 1986, quando dava os últimos retoques à mesa, para o almoço de boas-vindas ao Novo Ano, toca o telefone… Está? O que acabei de ouvir, pela voz perturbada do Dr. Cunha?...
Sem perdas pessoais, até porque, na altura, não estava ninguém a bordo, o CAPITÃO PISCO naufragara. Faz, exactamente, hoje, vinte e três anos.
Como fora, como não fora…Todos comentámos que o Novo Ano (1986) estava a começar com “óptimas” entradas…

Junto à Marginal da Figueira da Foz, onde hoje é o porto comercial, durante a invernosa noite, o Capitão Pisco estava atracado por fora do Santa Mãe Laura, arrastão igualmente costeiro, pertença da empresa de pesca Sociedade Brasília.

Por força da corrente, na vazante, os cabos do Santa Mãe Laura partiram-se e os dois navios foram de enxurrada, com a força da correntia, pela barra fora, quais brinquedos de criança.
O Santa Mãe Laura estatelou-se nas pedras do molhe e partiu-se de imediato – era de madeira.
O Capitão Pisco saiu a Barra, contornou o molhe e foi encalhar no Cabedelo, a sul da Figueira da Foz.
O mestre pedira para o levarem para bordo, de helicóptero, a ele e ao motorista, mas, impossível, devido às péssimas condições de tempo e mar. Ali ficou, meses e meses, dado como perdido.

A mútua considerou a perda total do navio e indemnizou a empresa, tendo ficado com os salvados que vendeu.
Com o alvará, construiu-se, para substituição da unidade, no Estaleiro Naval do Mondego, na Figueira da Foz, o arrastão costeiro para crustáceos Cygnus.
Fiquei, mais tarde, com um salvado de grande importância afectiva para mim, o sino, embelezado por um primoroso trabalho de marinharia.

Além de alindar a entrada da casa de praia, anuncia visitas e serve de mote a uma história “verdadeira” para os netos. Era uma vez… um barquinho verde, que, numa noite de mau tempo, ….
No domingo seguinte, num soalheiro, mas frio dia de inverno, eu e o Miguel fomos “ver para crer” e imortalizámos as chapas com que deparámos nas “chapas que batemos”.

Comentários para quê?


O Capitão Pisco encalhado

No baixa-mar



No preia-mar


O belo horrível…


Imagens – Arquivo pessoal da autora

Ílhavo, 1 de Janeiro de 2009

Ana Maria Lopes