sexta-feira, 26 de julho de 2013

Uma janela para o sal - IV

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A pôr vieiros...


É com precisa geometria de saber feito, que se traçam os meios, ao eixo, num riscado de torrões de lama, velha e ressequida das anteriores safras.
 
 
 
 
Põem-se os vieiros, enchem-se com novas areias, alisam-se, calcam-se, endurecem-se...
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Gente do sal retira e acarreta tudo o que restou e se criou no alagamento, para depois repor areias novas.
E num corridinho de homens e mulheres, de canastra à cabeça, equilibrando-se por estreitas tábuas, carrega-se a tão almejada areia do malhadal para os vieiros.
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A areia, essa, espalha-a, a jeito, o robusto moço, a mesma que o marnoto, com o seu saber, alisa e calca.
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Marnoto que labutas  na marinha, e que fastidioso trabalho é o teu!
Ora  cortas e remexes, ora rapas e carregas, para depois encheres, alisares e endureceres os vieiros por onde os rapões passarão vezes sem conta, juntando, sem misturar, o puro ouro branco.
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Nota – Para esclarecimento de linguagem técnica, consultar GLOSSÁRIO de Diamantino Dias.

Imagens | Paulo Godinho | Anos 80

05 | 06 | 2013

Texto | Etelvina Almeida |Ana Maria Lopes
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sexta-feira, 19 de julho de 2013

Uma janela para o sal - III

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Lamas novas...


Marinhas que renascem do negro invernoso para o veraneio salgado…
Fundos enlameados, ainda salgados, encamisados e areados, são fundos de parcel ainda em limpeza, em preparação para a seca da estrangedura e para a cura.


 
São estes homens, marnotos, que labutam nos meios da marinha, entre sol e vento.

 
 
Que brilho é esse a teus pés, homem de sal, homem de lama? Que brilho é esse que te reflecte num mar de carvão? Ai tanto, para ganhar o pão...
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Com o teu ugalho, estranges o fundo ao parcel e repetes esses movimentos vezes sem conta, até que as lamas se vão, até que o chão endureça, seque e cure para receber a nova água que dará o branco cristal.
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Do negro do fundo ao branco profundo, vão dias, semanas, de lamas, de sol, de água e vento, de mãos e pés calejados…

 
 
Pés de criança, que puxa e repuxa o rodo de lama com força redobrada...
Já são tuas pernas e braços um instrumento de trabalho, e é entre areias, sal, lama e água, que moldas o teu corpo ainda tão tenro e curtes a tua pele aveludada.
 
 
 
Marnoto atento, caminhas pelo macho da marinha e regressas a casa já cansado, afeito ao trabalho, curvado pelo peso do ugalho – esse que já se tornou no prolongamento do teu próprio corpo.
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Nota – Para esclarecimento de linguagem técnica, consultar GLOSSÁRIO de Diamantino Dias.
 
Imagens | Paulo Godinho | Anos 80

30 | 05 | 2013

Texto | Etelvina Almeida |Ana Maria Lopes
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domingo, 7 de julho de 2013

Uma janela para o sal - II

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Limpeza de lamas e moliços
É o início do árduo sustento desta gente, que vive do salgado labutar entre a ria e o mar.
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No seu pequeno mundo de contrastes entre o negro e o branco, a marinha renasce do espelhado alagado e desperta de uma longa entressafra, para a safra, no meio de grande azáfama.
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Com as marinhas alagadas por processo natural ou «por mãos criminosas», após os rigores da invernia, a safra começa entre Abril e Maio, quando a mãe-natureza providencia.
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Para o marnoto, são meses de «negro sal» de calor e de frio, do escuro azul das águas, do verde amarelecido das algas e moliços, do negro das lamas escorregadias...
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Nestes trabalhos preparatórios, homens, mulheres, rapazes e raparigas, em família ou em contrato, trabalham em prol de um sustento comum.
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Desses pequenos «cristais brancos», que temperam, à mesa, depende o alimento de marnotos, moços, barqueiros, armazenistas e comerciantes – esse sal, que é condimento para todo o alimento e alimento para a todas as bocas.

 

Moços ainda, tenros rapazes filhos de pai marnoto, aprendem e sentem o tempero do sal e o ardor do sol nesse corpo imaculado, antes de serem homens.
 
 
 
Ágeis, mas já fortes, acarretam verdes e negros restos de algas e de lamas, nas suas canastras de sonhos, sobre rodilhas de anelos que ainda pairam sobre as suas cabeças inocentes.
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Percorrem, correm e jogam no equilíbrio de seus corpos leves e lestos, o jogo dos «tabuleiros», como sói chamar-se-lhes, por finos e grossos liames, das barachinhas aos machos.
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Marnotos e moços descascam, ressecam, remexem, estrangem com pá cova e com forquilha, bimbam as beiras e acarretam da marinha os restos da entressafra, que no alagamento ficaram e se criaram – são algas, são moliços, são negras lamas.
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Entre a marinha velha e a marinha nova, velhos e experientes marnotos ensinam os moços novatos a estranger os meios, a recuperar muros e barachas, a tirar o entraval, limpando-o das lamas, que acarretadas para montes, ressecam ao sol... para futuros consertos.
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Nota - Para esclarecimento de linguagem técnica, consultar GLOSSÁRIO de Diamantino Dias.
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Imagens | Paulo Godinho | Anos 80
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21 | 05 | 2013
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Texto | Etelvina Almeida |Ana Maria Lopes
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segunda-feira, 1 de julho de 2013

Recriação da «pesca do chinchorro» na Torreira

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A ria, na zona norte têm andado muito activa. E andarilhámos para lá.
Vimos publicitado, há uns dias. Não podíamos faltar: recriação da pesca do chinchorro, «com lanços para a borda», na praia do Monte Branco, Torreira – Murtosa, pelas 9 h e 30.

 
Não podíamos faltar e assim foi. Que grande madrugada! Mas que belo dia de calor estival, ao sabor da brisa lagunar e do pé na areia e na água.
Ao chegar, quando se começa a sentir aquele odor a maresia, numa comunhão de céu, água e serranias longínquas envoltas em neblina, o espírito brilha, em fulgor, tanto quanto a laguna espelha a luz do sol, que, de ter acordado, ainda se espreguiça.
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Toda a embarcação que navegue na ria, para quem está na borda, tem um efeito de contraluz, que seduz os espíritos mais sensíveis.


Efeito de contraluz
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A belíssima, colorida, e elegante bateira da chincha (ou chinchorro) e os seus camaradas já treinavam, fazendo exercícios de aquecimento e encadeando os assistentes, ao rasgar com seus longos remos, o brilho estonteante das águas.
Ambiência e cenário não nos faltavam.
Com maré cheia, em acolhedora baía em que a água banha a areia, em seis ou sete lanços, os «artistas» e embarcação recriam o espectáculo.
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Quis olhar com outros olhos, pois ainda me lembro de se pescar à chincha, na Costa Nova, alando a rede para a borda, para as coroas ou para a própria bateira. Mais tarde, alguns grupos de veraneantes amigos também promoviam, para seu deleite, as próprias chinchadas (uma, pelo menos, por ano, em meados de Agosto, era designada a chinchada monumental). Dia de arromba para esses pescadores por um dia, em contacto directo com a ria, de calção ou calça arregaçada – daí a expressão de «ir à chincha».
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A arte do chinchorro, maior que a da chincha é uma arte lagunar de arrasto. Duas mangas de cerca de 25 metros conduzem à bocada, onde se insere o saco de cerca de 4.50 m, que vai adelgaçando, em direcção ao fundo. As mangas terminam pelos paus de calão, a que se prendem os cabos que manuseiam a rede – o do reçoeiro, que fica em terra e o da mão de barca, que regressa à borda, depois de largada a arte. A tralha das pandas, actualmente formada por pequenas bóias de esferovite atijolada, debrua a parte superior da rede, enquanto a tralha dos chumbos constituída por pequenas malhas de cerâmica de dois furos, os pandulhos, fazem mergulhar a rede, bordejando-a, inferiormente.
Explicada no essencial a arte, vamos à faina.


Impulsionada a bateira…
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Impulsionada a bateira, dois ou três homens ficam com o cabo de terra, nas mãos, aguentando-o fortemente, de água pela cintura.


Seguram o reçoeiro

Num remar batido, lesto e ritmado, com dois longos remos, terminados pelas macetas, junto ao punho, a bateira afasta-se.


A bateira lançando a rede
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Vai lançando a rede em arco, até que abica e dois ou três camaradas saltam para a água, sustendo o cabo da mão de barca.
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Seguram o chicote da mão de barca…
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Entregam-se atentamente ao alar das redes, puxando as mangas, deixando-as descair uma sobre a outra e, ao mesmo tempo, fechando o cerco.
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Alam a rede, fechando o cerco
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Hoje, o resultado da pescaria não foi nada animador – nada mais que uns peixitos prateados e saltitantes, umas enguiazitas serpenteantes e, que se visse mesmo, uma solha maior, espalmada. Caranguejos, de várias espécies, esses, eram mesmo em abundância. E os lanços repetiram-se as vezes necessárias à observação dos mirones e até que a caldeirada, a preparar na praia, lhes compensasse o esforço. Putos de ontem, homens de hoje! Homens da ria, habituados a tirar dela o seu sustento! Grande gente, experiente, sabedora e trabalhadora! Dignos de apreço! Desejarão, porventura, outra vida para seus filhos!
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E eu, tão, tão encalorada, calcava a areia escaldante. Face afogueada e brilhante, olhos ardentes e lábios salgados, desejava mesmo uma sombra pacificadora e uma aguinha fresca.
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E aí me estatelei na areia, ao abrigo do excesso de sol, mas não da paisagem – pinos e arbustos verdejantes, recortados no azul do céu, reclinavam sobre a areia que a água lambia, na sua languidez habitual.
E ao longe, observava os preparativos da caldeirada à moda antiga. Com um tacho pendurado numa vara enterrada, em diagonal, na areia (o vasculho, auxiliar da arte), e uma fogueira improvisada com umas ramagens e uns gravetos, o que dava mesmo nas vistas era o colorido dos «pozes de enguia».
E entretida a olhar as bandeiras novinhas em folha que flutuavam, plasmadas no azul do céu, do que me lembrava mesmo é que faz muita falta, na nossa Costa Nova, uma praia fluvial protegida, com condições adequadas, uma praia mesmo AZUL.
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Quem se lembra do que sobrou do Bico, saboreou e viveu os prazeres da ria, das embarcações e das barracas riscadas da Biarritz e até de San Sebastian, sente-lhe mesmo muito a falta, sobretudo para os jovens de agora.
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Imagens – AML
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Praia do Monte Branco, 29 de Junho de 2013
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Ana Maria Lopes
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