sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Entrevistando o Capitão do «Ilhavense I». 2

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(Cont.)
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– Houve salvados?
– Quando saltei para o meu dóri, levava comigo todos os livros e documentos de bordo, incluindo dois diários do piloto, mas o meu dóri foi ao fundo, sendo eu salvo nessa ocasião, por outro dóri que veio em meu auxílio, perdendo-se os livros e os documentos.
– Depois…
– Às três horas da manhã, como visse que já nada se podia fazer, para salvamento do navio, mandei remar para terra, em busca de local para desembarque
– Que foi…?
– Perto de uma povoação chamada Saint Shotts.
– Não voltaram ao navio?
– Voltámos por um cabo de vaivém que se estabeleceu de terra para o barco.
– E fizeram, então, alguns salvados?
– Apenas alguma roupa dos tripulantes e alguns objectos de insignificante alor, pois o navio já estava raso de água e impossibilitava, em absoluto, os trabalhos de salvação. Vendo que nada mais se podia ali fazer, voltámos a terra e fomos, então, em busca das autoridades. De Saint Shotts, comuniquei para Trepassey, povoação distante daquela cerca de vinte milhas. Telegrafou-se para o cônsul de Portugal em Saint John’s, Sr. João José Denis.
– O local onde encalharam é de boa navegação?
– Não. Até lhe chamam o cemitério dos navios. Dias antes de nós, naufragou um vapor inglês, que ainda lá vimos, morrendo toda a tripulação. Contam-se já perto de vinte, os barcos encalhados.
– Passaram muitas torturas?
– Muitas torturas e muita fome. Saint Shotts é uma povoação pequena, com cerca de 20 habitantes e onde não há recursos de espécie alguma. Havia de ser uma hora da tarde quando, extenuados, nos desjejuámos com uma chávena de chá.
– As autoridades fizeram-se demorar?
– Só passadas algumas horas depois que telegrafei é que chegaram ao local do sinistro o Juiz de Trepassey, o oficial da Alfândega e um polícia.
– E o nosso cônsul?
– Telegrafou imediatamente ao Juiz de Trepassey, pedindo que nos fossem dados imediatos socorros. Também o nosso conterrâneo Sr. Copérnico da Rocha* foi incansável e dispôs tudo para que nada nos faltasse. Fomos transportados para Trepassey em pequenos carros, por caminhos perigosíssimos, tendo ficado no local do naufrágio um polícia de guarda ao navio e aos salvados. De chegada a Trepassey, também lá estava o cônsul de Saint Jonh’s.
– Que providências tomou o cônsul?
– Averiguados todos os detalhes do naufrágio, e informado de que nada mais se podia fazer e vendo que os marinheiros estavam passando as piores privações, dormindo no soalho de uma sala e cheios de cansaço e fome e tendo ido ao local do sinistro comigo, com o piloto e autoridades verificaram a situação e posição do navio, ordenou, então, a nossa partida para Saint John’s, onde embarcámos a bordo do paquete «Nova Scotia» que nos transportou ao Havre, tomando neste ponto o vapor «Pancras», que nos desembarcou em Leixões.
– Vieram todos?
– Vieram 23 homens. Os restantes 5, em cujo número se contam o piloto, Sr. José Fernandes Matias de Melo e o contramestre Sr. Joaquim Fernandes Serrão, devem estar a chegar a bordo do vapor «Catalina»
– Quantos homens eram de Ílhavo?
– Seis. E outros tantos da Gafanha. Os restantes eram da Nazaré, da Figueira e do Algarve.
E o nosso entrevistado, sem dar mostras de aborrecimentos pelas nossas constantes e contínuas interrogações, cerrou neste momento os olhos.
Calámo-nos. Naquele instante, devia passar-lhe pela mente a recordação de um sonho feito saudade, evocando as horas tormentosas do naufrágio em que correndo da proa à popa, gritava aos seus homens:
– Coragem, marinheiros!
Antes fosse um sonho!
Mas, infelizmente, a perda do «Ilhavense I» fora uma dura e cruel realidade!
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Degustem esta entrevista levada a cabo há 86 anos, tal como eu a saboreei, apesar de todo o seu dramatismo.
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*Ainda conheci o Sr. Copérnico Rocha e sua Esposa, quando vinha a Ílhavo, irmão de Conceição e Rosa Rocha, tio de Maria da Conceição Rocha Mano e de José (Zeca) Mano.
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Costa Nova, 19 de Setembro de 2015
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Ana Maria Lopes
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