sábado, 28 de novembro de 2015

Os «Vougas» - influência na paisagem lagunar

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O lazer na ria - 2

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(Cont).
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Por volta de 1900, acentuou-se o desejo de fruir das belezas da ria, em passeio, do conhecimento das cales mais recônditas e estreitas e dos lugares mais típicos. Isso já era vulgar nas bateiras caçadeiras a 2 ou a 4 remos, muito leves para a brandura das mãos singelas e mimosas das raparigas.
A vela era para os mais musculados, mais rapazotes, de porte hercúleo.
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M. Mendes e J. Paião no IRENE. 1959
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Era um prazer sorver as belezas da ria, aproveitar a alegria da juventude, as brincadeiras, os namoricos, só de uma estação (amores de Verão ficavam enterrados na areia), ou perduráveis por uma vida.
Para além dos tais passeios lagunares a remos, havia, com muita frequência, picnics organizados, com umas boas dezenas de raparigas e rapazes à Bruxa (Gafanha da Encarnação), ao local da abertura do Canal do Desertas, à Vagueira e, para norte, à mata ou à Casa-Abrigo, para umas tainadas, em S. Jacinto.
Para isso, se alugavam um ou dois mercantéis, as ditas barcas de passage – assim eram conhecidas.
Começou a surgir a necessidade de reduzir a quantidade de picniqueiros e de tornar mais restritos e ocasionais, os passeios na ria. Já bastava a obediência ao horário das marés…Começava a surgir a necessidade de ter ou usar os tais «botes, mais tarde apelidados de Vougas».
O passeio mais habitual, mais à mão, mesmo na nossa frente, era uma ida à Bruxa.
E, a propósito de Bruxa, lembro-me e confirmei que no meu tempo havia duas Bruxas. Uma não chegava. Não é que houvesse ali alguma «bruxa» propriamente dita. Pero que las hay, las hay… A que ficava, como ainda hoje, mesmo junto à pseudo-mota da Gafanha da Maluca, ligada a uma Ti Norta, que curava algum malzinho, não era a que frequentávamos.
Caminhando uma centenas de metros, a pé, do lado direito, raparigas e rapazes, divertidos e desejosos de dar asas aos seus afectos, pois muitos houve, às vezes, ainda não resolvidos.
O recinto era um terreiro tapado por junco, protegido por um telheiro quadrangular, onde umas toscas mesas de madeira, alongadas, sob o telheiro, recebiam as vitualhas.
Não seriam o que mais nos interessava – umas bifanas, pão quente, uns pires de amendoins, tremoços e azeitonas e a famosa jeropiga (jorpigão), bebida doce e espiritual, em bilhas servida, para copinhos direitos e pequenos. Cuidado! As moçoilas, com umas lambidelas na borda do copinho da jeropiga tornavam-se mais doces e meigas, menos ariscas, mais dadas, prontas para o bailarico sobre o junco, pois íamos munidos de um gira-discos a pilhas, com as nossas preferências musicais em discos de 45 rotações.
O junco não seria o piso mais adequado para o bailarico, mas nem se sentiam umas picadelas ou cócegas do junco que entrava pelas sandálias, tal era o entrosamento amoroso.
E ao final da tarde, lá regressávamos à Costa Nova, sob a vigilância das mamãs, que nos esperavam, ansiosas.
Para ir à Bruxa, nem eram precisas barcas, mas mesmo (sim!) umas bateiras, ou então, os famosos Vougas. Neles íamos também com frequência, ao banho lagunar, cheio de piruetas e de mergulhos da proa, na Biarritz ou San Sebastian. O baixo calado do Vouga e o arredondado do casco facilitava-nos o retorno a bordo, para novo mergulho. Era assim a vida na ria… nadar por baixo do barco, outra pirueta, isto para os mais afoitos e destemidos. E facilmente se abicava à areia, se necessário.

O Vouga Zé Manel, em Agosto de 1948
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Nas idas à Vagueira, a sul, em duas barcas, ou a S. Jacinto, a norte, à mata ou à Casa-Abrigo, lá íamos munidos de cestas de mantimentos e doces, aprimorados, preparados habilmente pelas mães das moçoilas, para captar o seu futuro genro, se tal querença era do seu agrado. Instrumentos não faltavam – violas, violões, acordeões e bombos, para animar a festa, cantoria e pé-de-dança.

Picnic à Vagueira, em Agosto 1961

Podíamos rematar com uma banhoca fresquinha de mar espumoso, apesar da distância, à época, apanhando e comendo… camarinhas pelo caminho… Por isso, não faltavam mantas, agasalhos, as ditas grossas piolheiras, arrumadas sob a coberta da proa, para nos aquecerem ao final da jorna.
Os mais arrojados, rapazes, chegaram a velejar nos seus Vougas até ao S. Paio, famosa romaria da Torreira, a 8 de Setembro, ou fazer passeios até ao Carregal, Ovar.

Chegada do Carregal, em Setembro de 1958

Pelos anos 50, terá assim surgido a ideia do mítico Cruzeiro da Ria, desde 1959, com poucas interrupções, que, este ano, cumpriu a sua 52ª (quinquagésima-segunda) prova, com a duração de dois dias – Ovar/Aveiro/Ovar.
Nesta altura, não faltavam lazeres e entreténs na Costa Nova, tanto se vivia na ria. À noite, bailes chiques no Casino, abrilhantados por Jazz da época ou, em alternativa, passeios de vaivém pela esplanada ao som de músicas dedicadas, a pedido, na mítica Rádio Faneca. Outros tempos…
Mas quando havia um bota-abaixo de um Vouga, era uma festa de arromba. Assim reza uma notícia pescada em O Ilhavense de 20 de Setembro de 1941, acerca de um bota-baixo …Júnior construído pelo Mestre Gordinho, para o Sr. José Pardal.
E muito mais festas do género se fizeram, mesmo mais tarde, até aos anos 80. Basta lembrar a reinação feita aquando do bota-baixo do Vouga Gavião, construído para o Capitão Manuel Mendes, à época, no estaleiro Ria Marine pelo Mestre Alberto Costa.
Para além do Mestre Gordinho, foram surgindo alguns habilidosos de ocasião, que até construíram o seu próprio barco familiar.
Em fins dos anos 30, inícios de 40, sendo alguns proprietários de botes, moradores na zona do Sport Algés/ Dafundo e seus associados, tenho conhecimento que, entre 1938 e 42, o meu Avô Pisco chegou a levar alguns, no lugre Novos Mares, para Lisboa.
Confesso que na Costa Nova, fiz mais uso da minha bateira a 2 ou 4 remos, de forqueta, uma naifinha, com leme e tudo, mas, durante alguns Verões, muito nos divertimos no barco do João José Agualusa, que não era um Vouga, mas outro tipo de barco à vela.
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(Cont).
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Imagens – Fotos gentilmente cedidas pelos Capitães Aníbal, Paião, Manuel Mendes e Comandante Paulo Corujo.
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Ílhavo, 28 de Novembro de 2015
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Ana Maria Lopes
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