segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Homens do Mar - Manuel Nunes Guerra - 21

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Manuel Nunes Guerra

Nesta dança de «cadeiras de oficiais», em que me vou sentando, encontro uma motivação mais ou menos forte para tratar a pessoa em causa no «meu» momento exacto. Normalmente, a facilidade em conseguir imagens de homens a bordo, sua identificação e diversificação dos navios em que andaram, levam-me a «dar prioridade ao seu tratamento». Por outro lado, algumas dificuldades ou controvérsias, por vezes, empancam-me.
Desta vez, foi a antiguidade e a vizinhança, mas não só – também a graça da coincidência da trilogia do apelido Guerra. Explico.
No primeiro número impresso do jornal O Ilhavense, de 20.11.1921, no artigo «Eles que voltam da TERRA NOVA», entre outros, na nossa barra, deu entrada o lugre Guerra, comandado pelo Sr. Manuel Nunes Guerra e pilotado pelo também ilhavense Sr. José Russo Loureiro.
Sabia que tinha havido no princípio do século XX, uma sociedade armadora Nunes, Guerra e Cª, sediada em Ílhavo.
Em casa de pessoa amiga, havia encontrado uma belíssima foto de um lugre de uma candura e suavidade. Só poderia ser o Guerra II a deslizar, por antítese do nome, na calmaria pacífica, inspiradora, reflectora, espelhenta, das águas lagunares… Coincidência?...
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Segundo o Catálogo A Frota Bacalhoeira – Navios de pesca à linha, editado pelo MMI, em Maio de 1999, o lugre de madeira Guerra II foi construído em 1919 na Figueira da Foz por Sebastião Gonçalves Amaro para a Empresa Nunes, Guerra & Cª Lda., de Ílhavo. Participou nas campanhas de 1921 a 1930. Foi vendido à Parceria Geral de Pescarias Lda., Lisboa, para a campanha de 1933, passando a ter o nome de Corça.
Após a campanha de 1936, foi vendido à Companhia Transatlântica Lda., Porto, onde terá passado a ser o Granja, já com motor instalado. Participou nas campanhas de 1937 a 1939 e efectuou viagens de comércio, em 1940.
Naufragou em 1941, nos baixios a norte do Cabo de São Francisco, Terra Nova, quando se dirigia a portos da Terra Nova para carregar bacalhau seco.
Guerra II, Corça, Granja, que dança de nomes e de armadores…o que, acontece., com frequência.
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Que belo veleiro, espelhado em tão tranquila ria…Tem a elegância de manequim, em passerelle, ao exibir todo o seu velame.

Lugre Guerra II

O gosto pela pesquisa confrontada reacendeu-se e comecei a cruzar todos os arquivos marítimos e jornais em que me era facultado mexericar.
Manuel Nunes Guerra, natural de Ílhavo, nasceu a 7 de Fevereiro de 1896. Casado com a Senhora D. Irene Rigueira, sempre foi meu vizinho, de frente, na Rua Ferreira Gordo.
Obteve a cédula marítima nº 9435, na Capitania de Aveiro, em 20 de Outubro de 1910.
Depois de algumas viagens de que não conseguimos informação, o capitão Manuel Guerra, com 25 anos, já comandara o lugre Guerra II, nas campanhas de 1921, pilotado por José Russo Loureiro, como já referi, a de 23, por António Fernandes Matias, as de 26 e 27, por António Augusto Marques (Marcela), de 28, por António Fernandes Matias (Cajeira), de 29, por José Vaz Mano e de 30, por António Simões Picado.



Mesmo sem data certa, sem nome de navio, nem conhecimento da pessoa que acompanha o Capitão, a imagem é rica em pormenores marítimos de um antigo veleiro, em data anterior aos anos 40.
Porventura, em anos de crise, poderá não ter embarcado. Não há dados. Na campanha de 1934, comandara o lugre Maria Carlota. Ex-Estrela I, construído em 1918, no Canadá, tomou o nome de Maria Carlota, na campanha de 1927, e na de 1934, tornou-se propriedade de João Norberto Gonçalves Guerra.

Lugre Maria Carlota


Nas campanhas de 1935, 36, 37 e 38, comandou o lugre Infante, da praça do Porto, pilotado, respectivamente pelos ilhavenses Manuel Fernandes Matias (36) e João da Silva Peixe (37 e 38).
Sobre a campanha de 1938, encontrámos dados fornecidos pelo jornal O Ilhavense de 28 de Maio de 1938: – Quando na última terça-feira, à tarde, metia carburante, o lugre Infante, em Lisboa, para no dia seguinte iniciar a viagem para a pesca do bacalhau, devido a uma imprevidência de um daqueles trabalhadores daquele serviço, que, com uma vela acesa, pretendia ver se o depósito estava cheio, deu-se uma explosão a bordo do lugre, pertencente à Firma Transatlântica, do Porto, e comandado pelo Sr. Manuel Nunes Guerra, desta vila
Apesar de socorrido por rebocadores que andavam perto, parece que ficou impossibilitado de fazer, este ano, a sua viagem à pesca, tendo já os pescadores retirado para as suas terras.
Os prejuízos são elevadíssimos, mas estão cobertos pelo seguro. Felizmente que a explosão não atingiu os bidões de gasolina, que havia a bordo.

Na campanha de 39, o Sr. Capitão Guerra estreara (era sempre um prazer e uma honra) o lugre com motor Aviz, construído nesse mesmo ano por Manuel Maria Bolais Mónica, para a Companhia de Pesca Transatlântica, Lda., com praça no Porto. Comandou-o até 1947 (inclusive), mantendo sempre como seu imediato o ilhavense João da Silva Peixe.
Pai e filho mais novo, a bordo do Aviz, em dia de Bênção. 1941


Em 11 de Março de 1948, a nossa frota, enriqueceu-se com o bota-abaixo de mais dois navios bacalhoeiros, na Gafanha da Nazaré – os lugres Condestável e Coimbra, o primeiro com sede no Porto e o segundo com sede em Coimbra.
A cerimónia realizou-se com a solenidade e o aparato próprios destes actos, tendo sido servido na Costa Nova do Prado, um almoço aos membros do Governo, no Hotel Beira Ria, tendo percorrido as dependências daquela casa e felicitando o Sr. António Félix, pela sua iniciativa. Mesmo pouco a propósito, não me contive sem passar esta informação. Dá que pensar…
Mas, voltando ao nosso capitão, mais uma vez, inaugurou, no seu comando, o navio Condestável, lugre de quatro mastros, nele se tendo mantido até à campanha de 1952 (inclusive).

Condestável, na entrada, na barra do Porto…
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Os imediatos foram oriundos do Porto, Lisboa e Espinho. Os pilotos, nos anos de 1950, 51 e 52, foram respectivamente Manuel Gomes Craveiro Guerra, residente em Aveiro e o ilhavense Joaquim Manuel Marques Bela.
Ílhavo era copioso em oficiais, que se agrupavam, em circunstâncias várias. Nesta foto, com colaboração de amigos, só não conhecemos os dos extremos, superior, esquerdo e inferior, direito.
Será com agrado que, os menos jovens os identificarão e recordarão.

Grupo de oficiais, por volta de 1950
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E a vida vai rodando para todos – tantas viagens, tantas saídas e regressos. Que dureza de vida e saudade dos seus e do seu Ílhavo.
O «nosso» capitão deixou-nos prematuramente, em longa viagem, sem regresso, com 57 anos de idade, em Fevereiro de 1953.
Se bem me lembro, uns dias antes da partida do meu Avô Pisco.
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Imagens – Arquivo pessoal e gentil cedência de familiares.
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Ílhavo, 10 de Outubro de 2016
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Ana Maria Lopes
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quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Traineira IDELTA

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Bota-abaixo da traineira IDELTA, em Setembro de 1942

Há dias assim, em que as pesquisas não rendem ou, de facto, não encontramos o que procuramos.
Mas surge sempre algo que nos dá jeito, passível de aproveitar. Não eram precisos estes dados para saber que, no princípio do século XX, se construíram navios, de maior ou menor porte, em Ílhavo, lá para os lados da Malhada.
Eu e as imagens!... Esta foto que utilizo, enviou-ma um familiar dos Abreus, há meia dúzia de anos. Por aqui tem andado, desempregada. Hoje, cheguei ao texto que a ilustra, ao folhear Ilhavenses dos anos 40, para outros fins.
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Assim rezava o de primeiro de Outubro de 1942, que assim respigo:
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Dos terrenos da Seca Da Empresa de Pesca de Portugal, Lda., sita junto à Ponte Juncal Ancho, nesta vila, foi, no sábado (26 de Setembro), deitada à água uma traineira mandada construir pelo Sr. Francisco António Abreu, sendo construtor o Sr. Silvério Mónica, da habilidosa família deste nome, que em trabalhos de construção naval tem dado provas de uma perícia extraordinária.
A traineira que foi baptizada com o nome de IDELTA, sendo madrinha a filha do seu proprietário, menina Maria Frederica Paradela de Abreu, aluna da Faculdade de Medicina, tem 21 metros de comprimentos, é accionada por máquina a vapor e destina-se à pesca da sardinha, no Porto.
O bota-abaixo, a que assistiu grande multidão, foi coroado do mais feliz êxito, pelo que, tanto o proprietário, Sr. Francisco António Abreu, como o novel construtor, Sr. Silvério Mónica, foram muito felicitados.
De seguida, foi oferecida uma taça de espumante aos convidados, brindando pela prosperidade do arrojado iniciador deste empreendimento, o advogado, Sr. Dr. Joaquim Silveira.
No mesmo local, já está a ser preparado o cavername para a construção de um outro barco de 300 toneladas, que o Sr. Francisco Abreu conta ter pronto no prazo de seis meses.
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Eu, que era apreciadora de cerimónias de bota-abaixo, agora tenho de me contentar com as descrições e imagens encontradas.
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Foto – Gentilmente cedida por amigo
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Ílhavo, 17 de Outubro de 2016
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Ana Maria Lopes
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quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Homens do Mar - João Maria da Madalena- 20

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Na sequência da biografia marítima de João Fernandes Mano (Agualusa), só poderia ocupar-me, de seguida, da de João Maria da Madalena, respectivamente, Capitão e piloto do lugre Gamo que, em 1918, foi torpedeado por um submarino alemão camuflado, a 31 de Agosto, navegando o lugre na latitude 46º 02’ N e longitude 32º 32’ W, na rota dos Açores, tendo sobrevivido a uma aventura extenuante. Salvaram-se 34 dos 39 náufragos que tripulavam o bacalhoeiro Gamo, tendo aportado ao Faial em 8 pequenos dóris, quase sempre sem comer nem beber, 470 milhas à vela, a remo e a correr com as vagas.
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Natural de Ílhavo, nascido a 18 de Outubro de 1899 (-1964), começou por passar logo esta tremenda e trágica experiência de mar, aos 18 anos de idade, o que muito possivelmente, o terá marcado para a vida.
No entanto, o seu currículo marítimo não ficou por aqui. Tendo, muito possivelmente, andado cerca de 20 anos na marinha de comércio, voltou, de acordo com a ficha do GANPB, à pesca bacalhoeira, tendo exercido em 1938, o comando do lugre Santa Regina, com o imediato Artur Oliveira da Velha, também de Ílhavo, tendo tido o infortúnio de naufragar
Segundo o Jornal da terra, de 4 de Junho de 1938, na sexta-feira à noite chegou a notícia a Ílhavo de se ter perdido o lugre-escuna Santa Regina da Empresa de Pesca de Portugal, Lda., com sede em Ílhavo. O navio naufragou a noroeste dos Açores, tendo sido salva a tripulação por um vapor de carga inglês, que a levou para Glasgow. Era seu capitão o Sr. João Maria da Madalena e piloto o Sr. Artur da Velha, levando mais de doze homens de Ílhavo, sendo os restantes de outros centros piscatórios.
Pelo neto do Sr. Capitão João da Madalena fiquei a saber que Eduardo António Rodrigues, moço, de Ílhavo, que falecera no naufrágio, era cunhado do capitão, que o levara na viagem, a seu pedido, por estar desempregado. Mais um acaso que sempre marcou a vida do «nosso capitão».
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Tendo-me sido facultado o Diário de Bordo do Santa Regina, respigo excertos arrebatadores e aflitivos da descrição do seu naufrágio.
«… No dia 1 de Junho, o barco navegava com a proa à vaga e com o velame reduzido, de «capa rigorosa».
No dia seguinte era tal a força de mar e vento que o barco cavalgava por sobre as vagas, escorregando depois «a pique», como se fosse mergulhar nas profundezas, para logo de seguida apontar de novo a proa ao céu.
Por volta das 5 horas, rebentou dentro do navio um grande golpe de mar que inteiramente varreu o convés, formando a água castelo que ia até meia altura do mastro e que levou toda a borda falsa dos dois lados e 33 dories, arrancando as poucas velas que estavam içadas, partiu com fragor os «alvois» das escotilhas, a roda do leme e levou tudo quanto se encontrava solto no convés.
O barco tombou para o lado direito, fazendo um ângulo tal que a verga que cruza um dos mastros chegou a tocar na água.
Com o barco adornado desta maneira, começámos por lançar ao mar todos os ferros e correntes, depois o sal, (de que o navio ia carregado para conservação do bacalhau) e duas horas depois quando já corríamos com o mar e com o vento, novo e violento golpe de mar abriu 5 enormes brechas na popa do Santa Regina, partindo com grande estrondo parte da câmara e levando pela borda fora 3 dos nossos tripulantes.
O mar levou os 3 homens que nunca mais apareceram e levava tudo quanto encontrasse à sua frente… até um tanque de ferro com 3 toneladas de água foi atirado contra as enxárcias do mastro central, quebrando-as e deixando-o desamparado.
Todos os homens correram às bombas, mas os seus esforços resultaram inúteis, pois o navio cada vez metia mais água (…).
Assim nos mantivemos a lutar com o mar até às 17 horas, que foi quando avistámos o vapor inglês Cap. Nelson, que imediatamente acudiu ao nosso pedido de socorro (…), mas só na madrugada seguinte dia 3 de Julho conseguiu enviar-nos por 2 vezes um salva-vidas, que transportou para bordo do Cap. Nelson, todos os sobreviventes. O Santa Regina, em cujas câmaras havia sido lançado petróleo, para que não constituísse perigo para a navegação, afundou-se, em chamas, na latitude 40 34 N. e longitude 37,18 W. …».
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Entrevista ao Cap. João Maria Madalena, a bordo do paquete Lima, em 1938
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Em Jornal de 11 de Junho de 1938, ficamos a saber que a empresa em causa recebera um telegrama do capitão do Porto da Horta, anunciando que tinham chegado àquela ilha 30 náufragos do lugre Santa Regina, tendo falecido 3 tripulantes, sendo, entre eles, Eduardo António Rodrigues, moço, de Ílhavo, mais um da Afurada e outro da Nazaré.
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Os oficiais do lugre Santa Regina e do lugre Bretanha, naufragados, ambos, em 1938
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Nas campanhas de 1939, 40 e 41, «o nosso capitão» pilotou o lugre Cruz de Malta, pertença de Testa & Cunhas, Lda., sob o comando do Sr. José Gonçalves Vilão.
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Nas viagens de 1942 e 43, foi imediato do lugre Milena, sob o comando do Sr. António Augusto Marques (Marcela).
Entre 1945 e 1948 (inclusive), comandou o lugre Senhora da Saúde, adquirido pela empresa Tavares, Mascarenhas, Neves & Vaz, Lda., para a campanha de 1935.
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Em 1949, fez uma viagem como imediato, no arrastão Invicta, sob o comando de João Nunes de Oliveira Sousa, navio de aço, construído na Holanda, em 1948, para a Companhia de Pesca Transatlântica Douro, da praça do Porto. 
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Arrastão Invicta, da praça do Porto, anos 50
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A partir do início dos anos 50, comandou o navio de cabotagem Dione, construído em 1951, nos malogrados estaleiros de S. Jacinto, tendo tido, vários imediatos de Ílhavo.  
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A bordo do Dione, em 1955
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Também conhecido por João do Grande, foi um homem zeloso, trabalhador e amigo da família, de cuja companhia se viu privado tanto tempo, pelas ausências marítimas, cheias de perigos e agruras, desde a mais tenra idade.
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Imagens – Arquivo pessoal e gentil cedência do neto João da Madalena
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Costa Nova, 30 de Setembro de 2016
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Ana Maria Lopes
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quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Homens do Mar - João Fernandes Mano - 19

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Capitão João Fernandes Mano
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Como o mundo é pequeno e, às vezes, anda distraído…
Sempre fui conhecida e amiga da Senhora D. Maria Júlia Mano, viúva de Cândido Teles. Falava-me com frequência no feito heróico de seu Pai, contemporâneo de meu Avô, na pesca do bacalhau, mas, muito francamente, nunca liguei o nome à pessoa.
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Agora, que pretendia integrar em Homens do Mar, para memória futura, o grande arrojo do capitão e tripulação do lugre Gamo, qual não é o meu espanto, quando ao procurar a ficha de inscrição no GANPB de João Fernandes Mano, de alcunha Agualusa, nascido em Ílhavo, (1884-1965), li que tivera como filhos, João de Oliveira Mano, Júlio de Oliveira Mano (já falecidos) e Maria Júlia O. Mano, a tal minha amiga, contemporânea de minha Mãe, ambas com a vetusta idade de 91 anos.

E vamos ao Gamo. Há mais do que um relato. Assim sendo, resolvi ler ambos, e usar, respigado, o que estará mais à mão, o do jornalista Costa Júnior, in Ao Serviço da Pátria – A Marinha Mercante Portuguesa na Iª Grande Guerra, edição da Editora Marítimo-Colonial, Lda. Lisboa, 1944.
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Se a pesca do bacalhau já era, de si, tão dura, como todos sabemos, o ano de 1918 ainda conseguiu ser pior, pois, a ele acresceram os horrores e contrariedades da guerra submarina.
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E relata
Costa Júnior:-
(…) Eram 39 homens que constituíam a equipagem do lugre português Gamo, que naquele dia 22 do mês de Agosto de 1918, se preparava par iniciar a viagem de regresso ao Tejo. O navio encontrava-se, fundeado entre os baixios Sunder e Nain Fathons, carregado com cerca de seis mil quintais de bacalhau salgado.
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A ordem do Capitão de suspender a âncora teve de ficar adiada para o dia seguinte. A viagem, tão mal iniciada, parecia agora fazer-se, sem contrariedades e com vento de feição. Eis quando: (…)
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No dia 31 de Agosto, navegando o lugre na latitude 46º 02’ N e longitude 32º 32’ W, o vigia assinalou pela amura de bombordo, eram 16 horas, uma embarcação de velas içadas, mas sem jeito de ser navio de vela, pois as tinha sem regra e mal colocadas. O capitão João Fernandes Agualusa pegou no binóculo para melhor ver o estranho barco que se aproximava, e mal o fizera, viu a explosão de um tiro, no mesmo instante em que uma granada assobiando a sua música macabra, passava entre o mastro da mezena e o mastro grande, rente à borda do navio, indo o projéctil cair a cerca de 100 metros de distância.
A tripulação do Gamo não tinha dúvidas quanto ao tipo de visitante – um submarino alemão camuflado.
Imediatamente, o capitão, sem perder a serenidade, mas sem forças para lutar, rendeu-se à evidência, enquanto um oficial alemão o informou que apenas tinham dez minutos para abandonar o navio, que ia ser afundado, sem dó nem piedade.
(…)
Treze dóris (…) foram preparados e lançados à água, cada um deles tripulado com três homens, e sendo cheios 14 barris de 50 litros de água – dois dos quais ficaram no dóri do capitão. Era um espectáculo digno de ver-se, o submarino pairando nas calmas águas e atracados a ele os treze dóris. Depois do interrogatório costumado, os dóris largaram do submarino enquanto deste, a tiros de canhão, afundavam o Gamo. Ao longe, era avistado um penacho de fumo. O submersível apressou-se a mergulhar, e desapareceu.
Até 1 de Setembro, pela manhã, nada de extraordinário aconteceu, rumando as cascas de noz em direcção a sul, com mar chão.
Eis que rebentou uma forte trovoada, acompanhada de vagas alterosas, que impediu a navegação aos pequenos barcos.
(…)
Mas o que até aqui estivera mal, às 17 horas tornou-se muito pior. Um forte escarcéu de mar rebentou, levantando os dóris a pino, e voltando quatro deles; os restantes nove ficaram rasos de água, que só a custo, e com muito trabalho e sacrifício, pôde ser esgotada. Dois homens agarraram-se ao barco do capitão e foram salvos e outros igualmente por outras embarcações, salvando-se nove homens dos doze que tripulavam os quatro dóris que se perderam. Nesse instante, não mais do que um segundo, todos os barcos perderam a aguada e mantimentos, e três homens perderam a vida.
Tendo avistado a 2 de Setembro os faróis de um vapor, fizeram-lhe pedido de socorro, que não foi atendido. Um dóri, tentando correr sobre o vapor, acabou por se voltar, perdendo-se 2 dos 3 marinheiros que o tripulavam. E cinco vidas já estavam perdidas, em condições tão agrestes e impiedosas.
Mais uma vez, o capitão, corajosamente, aproveitou para fazer ver aos seus homens que nenhuma embarcação se afastasse.
Não havia que comer, e por única bebida para todos os homens, um barril com cerca de 40 litros de água. Era preciso sair daquela situação – navegando.
O tempo melhorara, embora pouco, e foi resolvido correr com a vaga, ao sabor da forte ondulação. Assim, entre a vida e a morte, correram os náufragos do Gamo setenta milhas para sul.
No dia seguinte, a vaga era menor, os barcos corriam com as gibas içadas, mas cerca das 23 horas uma onda mais alterosa fez entrar um dóri dentro de outro, afundando-o. A muito custo, os seus tripulantes foram salvos pelas (…) restantes embarcações.
Nos dias 4 e 5 conseguiram os bravos tripulantes do Gamo navegar à vela. No último dia acabara-se a água, e a comida era coisa que não provavam, havia já muitos dias. Nos dóris reinava a fome e a sede.
(…)
Entrara o desânimo. Aqui e além avizinhavam-se prenúncios de revolta entre os náufragos, sem forças para suportar o peso enorme da sua tragédia. O capitão resolve então intervir e … mentir.
Mentir? Sim, mentir, piedosamente – dizer à tripulação que não estariam mais do que a 36 milhas da ilha do Faial, o que o piloto, João Maria da Madalena, corroborou.
A mentira surtira o efeito desejado, mas o pior seria no dia seguinte, pois em boa verdade a ilha do Faial estava afastada ainda, pelo menos 80 milhas. Que nova mentira seria possível inventar?
Entretanto, o tempo não pactuara com a mentira e tornara-se agreste e enevoado. Não se vendo o horizonte, os homens, desalentados, começaram a desconfiar do apelo do capitão, que, entretanto, fora interpelado.
(…)
«Terra à vista! Terra à vista! Estamos salvos!» – gritavam todos a um tempo, ao avistarem as ilhas Graciosa, Faial e Pico, tão claras que pareciam pintadas num quadro.
Mas, depois de ligeiros momentos de alegria, reviravolta nas emoções. Um calor intenso e as gargantas secas que nem fogo estaladiço! Eis que capturaram uma tartaruga, o que, por vezes, acontecia. Rapidamente degolada, largou o sangue para um sueste, aparado por um pescador. Tendo-o bebido de um trago, caiu inanimado. Só água salgada pela cabeça lhe revitalizou os sentidos.
(…)
O dia estava escaldante, o vento entrara em calmaria e ninguém tinha forças para remar. Os dóris, a remos ou à vela, avançavam a passo de formiga, impulsionados por aquelas vontades de gigantes, e às 2 horas, após titânicos, o barco do capitão conseguiu dobrar a ponta dos Capelinhos, acompanhado por mais três. Nos restantes, os tripulantes completamente exaustos, não tinham forças para remar, certos que morriam à vista de terra sem a poder alcançar.
O capitão procurava inutilmente um lugar para desembarcar. Lá avistaram os náufragos o farol de um barco fundeado, e para ali se dirigiram todos. Era a canoa dum tripulante com o seu proprietário a bordo, e antes mesmo de lhe pedirem qualquer indicação ou auxílio, os pobres náufragos só puderam pronunciar uma palavra: Água! … Água!
(…)
Tendo-os o proprietário refrescado imediatamente, conduziu-os a casa, perto de um pequeno porto. A família do honrado pescador açoriano ajudou os náufragos do Gamo a sair, conduzindo-os a um poço, onde beberam até fartar.
(…)
Era uma hora da madrugada quando o capitão João Agualusa, amparado pelo caritativo pescador, foi até à da cidade da Horta onde vivia a autoridade marítima, participar-lhe o ocorrido e pedir-lhe auxílio para o salvamento dos barcos que se encontravam ao largo – sem que os seus tripulantes tivessem forças para se aproximar. Uma hora depois, saía da doca uma lancha a motor, em serviço na Capitania do Porto, fazendo rumo à ponta dos Capelinhos. Foi encontrado um dóri, que seguia rebocado por um barco de pesca que o socorrera, e mesmo sem acostar, o Patrão Mor atirou-lhes alguns pães e um garrafão de água; a viagem prosseguiu para rodear a ilha, e às cinco horas outro dóri foi encontrado, também já a reboque dum pesqueiro.
Continuou a busca dos restantes náufragos que durou toda a madrugada e toda a manhã, sem maior resultado, cruzando o mar em todas as direcções.
(…)
Em momento de tristeza, todos imaginavam os seus camaradas perdidos para sempre. Mas, entretanto ao passar a lancha junto ao porto de Castelo Branco, um homem gesticulava com desespero e ansiedade. Aproximaram-se e ouviram:
Os náufragos que faltam já estão todos em terra. O dóri do senhor piloto (João Maria da Madalena) arribou na costa norte, na praia do Almoxarife, e foi um automóvel buscá-los…
Satisfeitos com a notícia, os passageiros da lancha da capitania continuaram em direcção à doca, onde chegaram perto das 16 horas. No cais o bravo capitão João Fernandes Mano Agualusa era aguardado pelas autoridades e muito povo, cada um à porfia querendo saudar e homenagear o heróico comandante do Gamo que, comovido e envergonhado, não sabendo o que tinha feito para merecer aquele acolhimento carinhoso, chorava, as lágrimas caindo-lhe em grossas bagas pela cara abaixo. Quem, no momento de perigo defendera a vida de todos, e se portara como um valente; quem praticara feitos dignos dos velhos marinheiros portugueses que esmaltam de glória páginas antigas da história, chorava de comoção, envergonhado desse momento final de fraqueza. Disse depois: parecia-lhe que chorava de alegria por ver os seus homens salvos …
Passados dois dias foi encontrado o oitavo dóri pela lancha baleeira Amaral, que o trouxe a reboque para a doca do porto da Horta. Salvaram-se 34 dos 39 náufragos que tripulavam o bacalhoeiro Gamo, tendo aportado ao Faial em 8 pequenos dóris, navegando esses botes, quase sempre sem comer nem beber, 470 milhas à vela, a remo e a correr com as vagas.
E assim Costa Júnior acabou o relato, que burilei, provavelmente baseado, na narrativa escrita na primeira pessoa, por Capitão e Piloto do Gamo, a bordo do lugre Sílvia, aos quatro dias do mês de Julho de 1924.
Era este o feito heróico, a que a filha do capitão sempre se referia, mas eu, nessa altura, desconhecia-o.
E já agora, que lugre Gamo seria este?
O lugre-patacho Gamo foi construído em Inglaterra, no estaleiro de Ed. Tayport, tendo sido dado por concluído durante o mês de Março de 1874. Foi inicialmente baptizado com o nome Reindeer, propriedade de W. Thomson, que teve o navio matriculado na praça de Dundee.
Colocado à venda em 1885, foi comprado pela firma Bensaúde & Cª., por 3.150 000 (três milhões, cento e cinquenta mil réis) e registado nos Açores.
Em 1891, com a transferência da empresa Bensaúde & Cª. para Lisboa, o navio passou desde então a navegar registado em Lisboa, mas, à época, sob propriedade da recém-formada Parceria Geral de Pescarias.
No registo de 1899 o navio já se apresentava armado em lugre. Todavia, a informação parece incorrecta, com base na foto, abaixo, da Ilustração Portuguesa, de 1907, onde o navio foi retratado com aparelho de lugre-patacho. No entanto, é possível que o navio tenha, de facto, sido armado em lugre, muito provavelmente durante o período entre 1911 e 1913.
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O GamoIlustração portuguesa de 1907

Uma informação complementar relativa a 1902, permite constatar estar a navegar equipado de 42 tripulantes, com 32 canoas, passando alguns anos depois a dispor de uma equipagem à volta dos 35 tripulantes, com o mesmo número de canoas. A partir da lista de navios de 1909, já é possível verificar que o navio mantém valores, esses, confirmados pela lista de 1914. Nesta lista, o Gamo apresenta 38,90 metros de comprimento, 7,10 metros de boca e 4,04 metros de pontal.

Mas muito mais terá unido estes dois capitães, o meu avô Pisco e João F. Mano (Agualusa).
No jornal da terra, pescámos que o nosso capitão comandara o lugre Laura, que, mais tarde, viria a ser o Cruz de Malta, entre 1921 e 1925. Nos mesmos anos, comandava o Avô Pisco, o lugre Silvina, bem bonito, ali, em foto de época de Henrique Ramos, a exibir o pano a secar, ambos pertencentes à Empresa de Navegação e Exploração de Pesca, Lda., da praça de Aveiro.
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Ao fundo, supõe-se ser o lugre Laura

No mesmo decénio de 20, dá-o como capitão do lugre Sílvia, em 1928 e 29, também da praça de Aveiro.
Ao consultar a sua ficha do GANPB, que considero credível, esta atribui-lhe uma viagem como capitão no lugre Pescador da praça da Figueira da Foz, na campanha de 1937, de piloto no lugre Ilhavense II, sob o comando de Manuel Santos Marnoto Praia, na safra de 1941 e de capitão no lugre Florentina, pertencente à praça de Lisboa, nas campanhas de 1938 e 1942, o que não confere com o Ilhavense, jornal.
Admitamos que sim.
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O lugre Florentina

Em referência que lhe foi feita, aquando do seu falecimento, consideraram-no um nauta destemido, tendo comandado vários navios, dentre eles a barca Foz do Douro. Comandou, exactamente, a célebre viagem, que teve como célebre passageiro, o almirante Gago Coutinho, com partida de Santos e chegada a Leixões em 31.3.1944. Utilizando o velho astrolábio dos navegadores do século XV, Gago Coutinho fazia todos os dias as medições astronómicas ao lado dos pilotos do navio, que se serviam dos modernos aparelhos, como o sextante e o cronómetro, tentando imaginar como teria sido a viagem ao Brasil, de Pedro Álvares Cabral.
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Fotos – Arquivo pessoal e cedência da filha do Capitão
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Costa Nova, 19 de Setembro de 2016
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Ana Maria Lopes
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