quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Memórias da romaria da Senhora da Saúde

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Os festejos em honra da Nossa Senhora da Saúde, iniciados em 1837, vieram substituir a primitiva Festa de S. Pedro, em Ílhavo (que se tornou na Festa das Companhas), passando a ter data fixa, no último domingo do mês de Setembro.
Competia em popularidade com o S. Paio ou com o S. Tomé, na grandiosidade da animação dos festejos lagunares, no corrupio de gentes e na algazarra. Do norte do Bico ao sul da Mota, a Costa-Nova engalanava-se com o estendal de moliceiros.
Agora, vem aí a romaria…Só que nem dá p’ra te comprar uma flor…
A minha mais antiga recordação deste arraial é uma fotografia, no terraço do meu palheiro, à época, com dois anos e um grande laçarote na cabeça. A armação da festa comprova a data – fins de Setembro de 1946. Vivia no coração da romaria.
Outra memória, bastante mais forte e de que ainda hoje me recordo vivamente, foi a minha integração na procissão, trajada de anjinho – a primeira e a única vez.
Cá perdura o boneco tirado à la minuta no meu baú, como mandava a tradição.
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O anjinho assustado, de sete anos
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Só que foi uma procissão complicada e agitada, porque durante o seu trajecto, deflagrou um forte incêndio na, à época, Pensão Pardal, na esquina norte da Estrada do Banho.
Alterado o percurso, o susto apoderou-se de todos. As chamas lambiam as outras casas e todos temiam que se propagassem às residências vizinhas. Foi um alvoroço.
Lá vieram os Bombeiros de Ílhavo acudir ao sinistro que poderia ter alcançado proporções gigantescas, dado que as casas da proximidade eram palheiros de madeira ressequida.
Na ausência de data na fotografia, lá fiz algumas diligências para situar a ocorrência no ano certo – foi no domingo da Festa de 1951 (in O Ilhavense de 10 de Outubro de 1951).
Naquela idade os meus avós faziam-me as vontadinhas todas e eu lá tinha os meus rituais.
A minha primeira compra era um «chapelinho de papel» muito frágil e gracioso, que habitualmente estava à venda numa tenda, que montava arraial em frente à Vivenda Quinhas, hoje de Jorge Picado.
Quando chegavam à minha porta, a ti Adelaide Ronca com as flores de papel com quadra popular e ventarolas, e a ti Caçoa, com o baú das doçarias tradicionais, entre as quais sobressaíam os melosos e açucarados suspiros e os bolinhos brancos, logo as boas festeiras tinham em mim uma das primeiras freguesas; uma mão para erguer o moinho à procura do vento, até que zunisse, e logo a outra atascada com doçarias para secar a água que me crescia na boca, só de vê-las.
Seguia-se a visita à Vida de Cristo, em movimento, descrita em voz roufenha, rouca do publicitador, tornada ensurdecedora pela ampliação conferida pelas cornetas do altifalante, que tentavam sobrepor-se ao anúncio das cadeiras voadoras ou da casa dos espelhos ou do comboio fantasma, itens do arraial que se iam visitando, vez à vez, até que esgotados  na segunda-feira do fim de festa.
Incluída no programa das visitas, não podia faltar uma ida  às barracas de loiça de Barcelos, para  «puxar» de uma argola presa a um fio, que erguia o número correspondente ao prémio, que calhava em sorte.
Assim ia gozando a festa naquela idade da criancice e inocência.
Os restantes registos fotográficos são bastante mais tardios, de 1960, ano em que as minhas amigas e eu, já espigadotas, no esplendor da nossa juventude, combinámos viver a Senhora da Saúde, à moda antiga. Tinha 16 anos.
Os primeiros sinais da romaria eram dados pela chegada e montagem da armação. Depois, a vinda das primeiras tendas. Mas quando os primeiros moliceiros chegavam do norte e do sul da ria, os norteiros e os matolas e atracavam mesmo aqui pertinho de mim, então a festividade estava próxima.
Experimentámos de tudo um pouco. Depois de um belo passeio de Vouga, estava na hora de começar a reinar: andámos de carrossel, de carrinhos eléctricos, de cadeirinhas voadoras, integrámo-nos nas danças sobre a proa dos moliceiros, subimos aos vistosos e animados coretos, tirámos a sina numa boneca de tecido peludo preto, com uma grande cabeçorra, normalmente em frente do palheiro dos Senhores Moura, hoje da Rosa Maria Moura, apreçámos toda a quinquilharia possível, desde os toscos brinquedos de lata e madeira aos ferros forjados mais elaborados. E o café de apito?
Assistimos respeitosamente ao desfile da procissão, apreciámos o fogo-de-artifício, assustando, conforme podíamos e sabíamos os forasteiros, especados, de olhos pregados no céu.
Foi assim a nossa festa setembrina de 1960, em homenagem à Senhora da Saúde, em que se concentrava grande número de devotos.
As participantes na folia eram Maria Manuela Vilão, Rosa Maria Moura, Eneida Viana e eu.
Hoje, no entanto, apenas com os festejos religiosos, fogo-de-artifício, e umas doçarias festivas, ainda se vai passar à Costa-Nova a Senhora da Saúde. Nem gostamos, sequer, de ver a casa fechada. Tradição… É a que temos. É para respeitar, tentar transmitir…e, se possível, melhorar.
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Debruçados no coreto
 
Sobre as belas proas de moliceiros
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A «ler a sina»
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No «carroussel»
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Imagens – Arquivo pessoal da autora
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Ílhavo, 21 de Setembro de 2017
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Ana Maria Lopes

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

A Associação Memória e Património dos Terre Neuvas visita o Museu Marítimo de Ílhavo

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Repetindo a visita que fizera ao Museu Marítimo de Ílhavo, em Março de 2016, esteve, hoje, de novo, presente, no MMI, uma representação da Associação «Mémoire et Patrimoine des Terre Neuvas», uma colectividade sediada em St. Malo, França, que visa preservar a memória e património da pesca do bacalhau na Terra Nova.
O grupo visitante
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Motivo?????????Jean Baptiste Georgelin, no ano de 1959, um jovem pescador francês, tripulante do arrastão Colonel Pleven, acabou por cair ao mar, em pleno Atlântico Norte, em águas geladas de difícil sobrevivência, sem que ninguém o tivesse visto.
Só mais tarde, a restante tripulação terá dado pela sua falta e o aviso ecoara mais tardiamente. O código de emergência foi escutado a bordo do arrastão português Águas Santas, cujo capitão era, na primeira viagem de 1959, o ilhavense Manuel Lourenço Catarino, nascido em Fevereiro de 1900.
O pescador francês não esqueceu os tripulantes portugueses, que, indo ao seu encontro, num bote, lhe salvaram a vida e tinha uma vontade férrea de os vir a conhecer.
Com um deles ainda vivo, natural de S. Jacinto, aqui ao lado, Manuel Joaquim Bola Vieira, visitou-o, hoje de manhã, na sua terra, para lhe transmitir um sentido agradecimento – o seu renascer. O outro, já falecido, natural da Murtosa, Abílio da Silva Rodrigues Brandão, foi representado pelo seu irmão, que também esteve presente.
No MMI, o nosso reencontro com os elementos da referida associação e com Jean Pierre Andrieux e sua esposa, foi extremamente afectuoso, constando de uma visita guiada em francês, para uma compreensão plena, à Sala Faina Maior e Aquário dos Bacalhaus.
Conhecer o sobrevivente, Jean Georgelin, depois de tais chocantes peripécias em bom estado de saúde e muito bem conservado nos seus 75 anos, foi emotivo e comovente.
Jean Georgelin e eu
Alguns exemplares do livro Portugal no Mar e Tributo a Capitães de Ílhavo foram oferecidos a elementos da comitiva e ao pescador «sobrevivente», tendo sido feita uma identificação visual do capitão, à época, do Águas Santas, e dos pescadores salvadores, no livro Portugal no Mar.
 
Por idêntica gentileza, foram-nos oferecidas placas simbólicas do inédito salvamento. Uma tarde agradável.
Ílhavo, 7 de Setembro de 2017
Ana Maria Lopes
 

terça-feira, 5 de setembro de 2017

Amizades geradas na Costa Nova

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Com este tempo outoniço, aproveitá-lo mesmo para limpezas de roupas e papelada. Nestas andanças veio-me à mão um texto de Isabel Maria C. Madail, que arengou, no final de uma apresentação no CVCN, minha e de Etelvina Almeida, Uma viagem p´la ria, em Agosto de 2014.
No final, a Isabel pediu a palavra… Que quereria ela dizer? Nada como dar-lha, para saber:
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Esplanada e embarcações lagunares, na Costa Nova
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Não posso deixar passar este momento sem intervir, prometendo ser breve
A Ana Maria e eu vivemos muito na Costa Nova e a Costa Nova, fomos amigas e às vezes inimigas (ela era endiabrada) toda a vida.
Os nossos familiares vinham para a Costa por Maio, aqui permanecendo até finais de Outubro. Se houvesse obras de vulto a fazer, viriam mais cedo, claro, e a estadia, então, prolongava-se. Daí o tratarmos por Tu esta terra onde nos sentíamos e sentimos bem, onde conhecíamos toda a gente, para onde fugimos para tentar curar as agruras que a vida também nos trouxe, continuando, até hoje, a fazê-lo.
Aqui, a Ana Maria era a «Aninhas» e eu, a «Inzabelinha».
Contudo, a Ana Maria, muito atrevida, decidiu nascer antes de mim, uns escassos três meses, o que lhe deu a vantagem de entrar na Escola um ano antes de mim, muito importante, e eu tive muita pena.
Como ela bem disse, andou cá na Escola na 1ª e 3ª classes, quando da construção da casa onde hoje vive.
Eu que nunca me conformei por ter nascido depois dela, entrei na Escola um ano mais tarde e, assim frequentei a 3ª classe na Costa Nova, enquanto a Ana Maria a tinha frequentado no ano anterior, fazendo exame da 3ª na Gafanha da Encarnação; para isso a travessou a ria, de barca, com a Professora e os colegas, tudo cheio de pompa e circunstância.
Contudo, só por causa do meu atraso em chegar a este mundo, quando, no ano seguinte, pensava que ia fazer exame à Gafanha com o resto da turma, fiquei desiludida: Foi o 1º ano em quês se fizeram exames na Costa – um ponto a favor da Ana Maria que foi de barca.
O centro do «mundo» – a Costa Nova
Claro que eu, ao longo dos tempos atravessei a ria com enterros, que eram também fluviais: o caixão e acompanhamento iam na barca, para a outra margem, mas, não sendo a viagem privativa, iam também outras pessoas, cujo único meio de transporte era aquele.
Mas, voltando à Ana Maria que na Costa Nova era Aninhas: um dia estávamos ao colo das nossas Mães e, sem quê nem para porquê, eis que ela se lembra de me dar uma valente bofetada
Quando fazia qualquer asneirita, como eu ou qualquer outra criança, o Capitão Pisco, seu Avô, de saudosa memória, dizia-lhe que eu é que ia passar a ser a neta  dele e aí aparecia ela, pior que estragada, como se eu tivesse culpa.
Mas éramos muito evoluídas: o Avô pagava uma barraca na Biarritz para nós nos vestirmos após o banho da ria. Muito fino… teríamos 7 /8 anos
Além de tudo, foi a Costa Nova que mais nos ligou: fazíamos campeonatos do jogo do prego, de ringue… Temos sido próximas desde sempre. Matriculámo-nos no mesmo curso, eu um ano depois, claro, por causa dos tais três meses…
A Ana Maria era mais azougada do que eu no que respeita ao mar: muito nadadora, muito despachada…
Perdoem o tempo que vos roubei, para vos contar como se formavam amizades nestes areais.
A nossa Costa, a Costa da nossa infância, onde passávamos meio ano, deixou-nos marcas profundas, que fazem com que, embora tendo visto muito lugares bonitos, continuemos apaixonadas por ela. E a Ana Maria fá-lo de forma mais notória, mais interveniente, e muito bem. Por isso a felicito!
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Pela beira da ria…1960
Não lhe posso perdoar que se tenha adiantado a mim, que nasci apenas três meses mais tarde, o que lhe dava um ar muito importante, já que andou sempre mais adiantada do que eu.
Isabel Maria C. Madaíl
CVCN, Agosto de 2014
AML
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