sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Homens do Mar - Samuel Corujo - 36

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Samuel Lopes Corujo
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Vizinho de rua, Ferreira Gordo, nº 20, há tantos, tantos anos, homem simples, bom, simpático, dado, afável – Samuel Lopes Corujo –, desta vez chegou o momento de lhe rememorar as histórias marítimas. Já o tinha lembrado como o «Sr. Samuel das garrafas» – explicarei porquê – mas, desta vez, é o motorista, o homem do mar que vou recordar.
Samuel Lopes Corujo, nado e criado em Ílhavo (1922-2005), filho de Samuel Francisco Corujo e de Emília Augusta Lopes Corujo, casou com Maria Victorina S. Marques em Agosto de 1948. Deste casamento, nasceram três filhos: Emília Augusta, António Samuel e José Manuel.
Era portador da cédula marítima nº22226, passada pela Capitania do Porto de Aveiro, em 1937.
Apenas com 15 anos de idade (em 1937) fez a sua viagem de baptismo como ajudante de maquinista no lugre com motor Anfitrite 1º (1927-77), de quatro mastros, que se dedicava apenas ao comércio e no qual viajou muitas vezes para as costas da América e de África.
Lugre Anfitrite . Col. de LMC
Seguiu-se o lugre Patriotismo, também do comércio, em que naufragou, ao largo de Peniche, em 17 de Fevereiro de 1941, devido a um ciclone que assolou a costa portuguesa. Parece que o navio foi abandonado por falta de condições de navegabilidade. Transportava carvão do Porto para Lisboa, quando naufragou, tendo morrido o contramestre, que, curiosamente, era o único tripulante que não era de Ílhavo.
O lugre Patriotismo, em Peniche, em 1941.
O Patriotismo, lugre de madeira, construído para a Parceria Marítima Douro, Lda., por José Dias dos Santos Borda Júnior, em Fão, em 1924, destinou-se à pesca do bacalhau, tendo feito a última campanha em 1939 e tendo passado para o comércio em 1940. Navegou só à vela até 1934, tendo recebido motor auxiliar em 1935.
Em 1949, Samuel Corujo, 8 anos depois, passou, definitivamente, a motorista/maquinista de arrastões da pesca do bacalhau, onde passou por algumas peripécias, sofrimentos e tragédias. Que mais labutas lhe reservaria a vida de mar?
Depois de, em 1949, ter ido buscar o arrastão António Pascoal, à Holanda, onde fora construído para a empresa Pascoal & Filhos, sediada na Gafanha da Nazaré, entre 1949 e 1952 (inclusive), exerceu o cargo de 3º motorista nesse mesmo arrastão, tendo-o estreado, sob o comando do capitão ilhavense Manuel Pereira da Bela, com duas viagens nos dois primeiros anos e uma, nos dois últimos. Nada de anormal, segundo creio, a bordo.
Em 1953, Samuel Corujo numa nova emposta, muda de arrastão e vai ao mar no Santa Mafalda.
Era um arrastão lateral construído em 1948, para a Empresa de Pesca de Aveiro (EPA), pelo estaleiro Odero Terni Orlando, em Livorno, Itália.
Foi para ficar por 14 anos, equivalentes a 23 campanhas, pois os arrastões nem sempre faziam duas viagens por ano e nem sempre a tripulação se mantinha. A última viagem que não chegou a ser realizada, acabou com o naufrágio do arrastão. Durante esta porção de tempo, Samuel Corujo conheceu os capitães António Trindade da Silva Paião (1953, 54 e 55), José de Oliveira Rocha, (de 1956 a 65), António Trindade da Silva Paião, (2ª viagem de 1962) e Asdrúbal José Sacramento Teiga, todos de Ílhavo.
Alguns acontecimentos aziagos fustigaram a carreira marítima do nosso amigo – o primeiro, o esmagamento de dois dos dedos da mão direita, em 1959, num acidente de trabalho, a bordo, e o outro, o próprio naufrágio insólito do navio, a que voltarei.
Recordou-me, várias vezes, nas nossas conversas, o acidente que sofrera, a bordo do arrastão Santa Mafalda, enquanto 3º motorista, que lhe roubara dois dedos da mão direita. Os dois dedos que lhe sobraram intactos (polegar e indicador) ficaram com a força e ligeireza de um perfeito alicate. Episódio esse, imortalizado pela pena de Bernardo Santareno, ao tempo, médico no Gil Eannes, em Nos Mares do Fim do Mundo, de que me transcrevo uns excertos:
Alô! Alô! O «Santa Mafalda» chama urgentemente o médico! Alô! Alô! Médico! Médico!...
Eu estava no «Bissaia Barreto» (…). Foi então, à hora do jantar, que, aflitivamente, este S.O.S. rasgou os ares: o terceiro maquinista do «Mafalda» tinha uma mão esmagada, por acidente de trabalho!
Era preciso intervir e quanto antes.
E os dois navios navegaram ao encontro um do outro.
O enfermeiro, o Lourenço, a voz trémula de emoção, deu-me pela «fonia» mais pormenores: um dos dedos, preso à mão por escasso retalho de pele, estava sem dúvida condenado; e além deste, dois dos outros dedos desta mesma mão, com fracturas múltiplas e expostas, teriam provavelmente a mesma sorte.
Era preciso ver as lesões, mas como chegar ao «Mafalda»? O mar, agora, estava bravo como eu ainda não o vira: varas apocalípticas cruzavam o «Bissaia» em todos os sentidos, o vento levava pelos ares madeiras e cordame, a névoa tornara-se impenetrável. Como? Como passar?! (…)
(…) Era impossível tentar a minha passagem. Ai, o alívio que eu nesse momento senti! (…)
Em todo o caso e sempre pela telefonia, lá fui dando instruções de que me lembrei ao pobre Lourenço.
Era desesperante.
O mar atingira o auge da fúria: rasgava tudo; vencia, com o seu clamor monstruoso, os pobres gritos humanos; lavava, com a espuma claríssima das suas ondas, a sangrenta nuvem daquela hora.
(…) Mas aquele ferido, tão novo, um rapaz… ai, aquela mão! E se fosse possível salvar-lhe os dedos lacerados? Bem bastava o outro, o que já tinha sido amputado (…).
E mandei seguir o «Santa Mafalda» para terra.
Recebi hoje – oito dias sobre este acidente – uma notícia admirável: o terceiro maquinista, apesar da brutalidade das lesões, ficará com os seus dedos!
Tudo valeu a pena: a angústia daquela hora, a raiva humilhante da minha impotência, o suor de sangue e fel do Lourenço, o desespero dinâmico do comandante do «Mafalda».
Valeu a pena, valeu a pena!
Quanto ao naufrágio do Santa Mafalda, o jornal O Ilhavense de 10/2/66 refere-se-lhe:
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À saída da barra de Lisboa, no dia 21 de Janeiro, pelas 11 h e 40, em frente a S. Julião da Barra, numa zona da barra onde o mar obriga às maiores cautelas, pela sua estreiteza, e por ser semeada de rochedos e bancos de areia, ocorreu mais um naufrágio, cujas consequências, entretanto, felizmente, não foram além dos elevados prejuízos materiais.
O mar encapelado, devido ao vento forte que soprava do quadrante sul, tornava perigosa a navegação. No entanto, os navios da frota bacalhoeira do arrasto, como estava previsto, suspendiam e aprestavam-se para seguir, rumo aos bancos de pesca da Terra Nova e Gronelândia, a fim de iniciarem mais uma campanha. Da dezena e meia, destinados a tão espinhosa faina, três iam já de abalada, quando o sinistro foi assinalado.
As águas revoltas da baixa-mar transpunham, espectacularmente, a muralha da estrada marginal. A neblina envolvia o espaço, dando ao Tejo um aspecto sombrio. Manhã de pura invernia. Percorrendo o estreito corredor da barra Norte, de quilómetro e meio de largura, entre o Forte de S. Julião e o Farol do Bugio, deslizava, sofrendo os impulsos da agitação das águas, o arrastão Santa Mafalda, da praça de Aveiro, da EPA.
O Santa Mafalda comandado pelo capitão Asdrúbal Teiga Capote, de Ílhavo, passava em frente de S. Julião, navegando a velocidade reduzida. Batido por rajadas de vento violento, sofre uma avaria de leme, cujo sistema eléctrico leva o navio trancado a estibordo.
O navio sem governo permaneceu à deriva, ao sabor do vento sudoeste e da corrente e foi impelido para perto da margem direita, até que um enorme rochedo localizado a cerca de trezentos metros da Fortaleza, entre as pedras da Torre e de Carcavelos, conhecido por Pedra da Laje, e frente à piscina, o imobilizou e lhe terá produzido um enorme rombo no costado.
Entretanto, não obstante a situação não se afigurar dramática, dada a curta distância que separava o navio da margem, três homens da tripulação do Santa Mafalda tomados de pânico, muniram-se de cintos de salvação e lançaram-se ao mar, vindo a ser recolhidos, com as naturais dificuldades, por uma lancha do vapor dos Pilotos.
Foi, assim, através daquela lancha que continuou a prestar valiosa colaboração que os náufragos foram recolhidos, após se ter conseguido estabelecer um género de cabo de vaivém com o vapor dos Pilotos, que se posicionou a barlavento, e muito próximo do Santa Mafalda. E nestas andanças, que não teriam sido fáceis, apesar da proximidade de terra, se salvou, como os restantes tripulantes, o nosso homem do mar Samuel Corujo.
O mar, após dez dias de fúria violenta, partiu em duas partes o arrastão Santa Mafalda, e por ali acabara por ser desmantelado.
Santa Mafalda encalhado. De Navios à vista
Neste caso, a mudança de navio era mesmo obrigatória e, a partir de 1967, Samuel Corujo, com novo enxoval de bordo, passou para o arrastão Santo André, até 1975, perfazendo 13 campanhas.
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A bordo, em St. John’s, nos anos 70
Este arrastão lateral nasceu em 1948, na Holanda, por encomenda da Empresa de Pesca de Aveiro e dentre os capitães que o comandaram, neste período, foram de Ílhavo, o Capitão Nordeste (1967 a 70), António Trindade G. Paião (1971, 72 e 73, 1ª viagem), e Capitão Ernesto Pinhal (1975).
Arrastão Santo André, em plena pesca
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Em 1976, uma maleita do coração abanou o peito de Samuel Corujo, não mais tendo embarcado. Em 1982, aposentou-se, após uns anos de serviço em terra, na empresa a que pertencia o navio.
Quando visitou o arrastão Santo André como navio-museu, com a Família, emocionou-se ao reconhecer os espaços por onde trabalhou e se movimentou, incluindo o seu próprio camarote. Havia vestígios da sua existência naquele navio… Hoje, como todos sabemos, constitui um pólo do Museu Marítimo de Ílhavo, ancorado junto ao Jardim Oudinot, na Gafanha da Nazaré. O armador do navio e a Câmara Municipal de Ílhavo decidiram transformar o velho Santo André em navio-museu, tendo em Agosto de 2001, iniciado um novo ciclo da sua vida: mostrar aos presentes e vindouros como foram as pescarias do arrasto do bacalhau e honrar a memória de todos os seus tripulantes durante meio século de actividade.
Evoluindo aos poucos, na longa carreira, profissionalmente, acabou por chegar a 1º maquinista nas últimas seis campanhas do Santo André, pela boa prestação de serviços e suas qualidades humanas.

E agora, que fazer durante a aposentação, que ainda foi longa? Mesmo depois de alguns trágicos incidentes, as saudades oceânicas atacavam o Sr. Samuel. Prolongou o seu gosto pelo mar e navios, depois de ter aprendido com um familiar mais velho, Capitão Weber Bela, a engarrafá-los artisticamente em garrafas de vidro. Arte própria de marinheiros habilidosos! Motoristas e maquinistas, normalmente hábeis, atiravam-se a esta actividade artesanal, em dias de brisa! Convinha que não fossem muitos!…
Já que moradores na mesma rua, visitávamo-nos com frequência. Ou o ex-maquinista/artista me vinha entregar os seus trabalhos encomendados, o que me dava sempre muita satisfação ou eu visitava-o para observar os «principais passos» do «engarrafamento de mar e veleiros». Entretanto ouvia as suas histórias marítimas, alegrias ou tristezas vividas ao sabor das vagas, durante perto de quarenta anos. A lista de encomendas de veleiros em garrafas era enorme, mas haveria muito possivelmente maneira de a «furar». A falta de sono fazia o nosso homem do mar, em terra, acordar antes do alvorecer e logo se agarrava ao passatempo preferido com muita paciência e minúcia. Os eleitos? Seriam o Gazela Primeiro, com ou sem os minudentes palheiros, o Creoula, o Argus, o Cruz de Malta, o Novos Mares e muitos mais. Eu, claro, além de outros que navegam na casa de praia, mandei fazer o Ana Maria. O segredo está nos mastros… – confessava-me ele, exemplificando.
O segredo está nos mastros…
O nosso motorista serviu alguns navios que, para o bem e para o mal, ficaram na história dos bacalhoeiros portugueses – lugre Patriotismo e arrastão Santa Mafalda pelos naufrágios inéditos sofridos e arrastão Santo André, pela transformação em navio-museu.
Com a forte e bela narrativa de Santareno, ficou Samuel Corujo imortalizado na nossa literatura marítima e com os «seus barquinhos», lembrado nas colecções de miniaturas de veleiros em garrafas, espalhadas por todo o mundo.
No feriado municipal de Ílhavo de 2006, foi homenageado, a título póstumo, pela CMI, com a medalha de mérito cultural de prata.
Ílhavo, 6 de Outubro de 2017
Ana Maria Lopes
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